São Paulo, sexta-feira, 21 de março de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O voto assombroso de Ayres Britto

JAIME FERREIRA LOPES e HERMES RODRIGUES NERY

Camus considerou a crise mais séria a que nos levou à revolta metafísica, em que inteligências humanas voltaram as costas a Deus

DEPOIS DO pronunciamento do ministro Carlos Ayres Britto no STF (Supremo Tribunal Federal), na histórica tarde de 5 de março, indagamos: já chegamos ao tempo da pós-humanidade? Aquele discurso soou fundo, preconizando um sombrio cenário huxleyano.
Em "L'Homme Révolté" (1951), Albert Camus faz reflexão profunda sobre a principal crise da nossa época: a revolta metafísica, que ele tão bem analisa para entender "a força corrosiva do niilismo ativo" de nossos dias.
De fato, Camus considerou a crise mais séria de todos os tempos a que nos levou à revolta metafísica, em que grandes inteligências humanas voltaram as costas para Deus, ambicionando, numa obsessão patológica, tomar o seu lugar na história, no afã de obter o domínio completo da vida, em todas as suas formas e dimensões.
Trata-se de uma revolução filosófica que pretende reduzir a zero "as correntes metafísicas aristotélico-tomista e kantiana", como propõem Mark Johnson e George Lakoff, apólogos do cientificismo, ancorados nas neurociências.
Camus ressalta que, por causa dessa obsessão, há uma cumplicidade com o mal, no jogo do vale-tudo.
As palavras do ministro Carlos Ayres Britto nos levam a pensar na lucidez de Camus, quando afirmou que "há crimes de paixão e crimes de lógica (...) Os nossos criminosos já não são aquelas crianças desarmadas que invocavam o amor como desculpa.
Hoje, pelo contrário, são adultos, e o seu álibi irrefutável é a filosofia, que pode servir para tudo, até para transformar assassinos em juízes".
Sim, "a filosofia -ou a ideologia-, que pode servir para tudo", inclusive tornar legítimo o assassinato das crianças não nascidas, o extermínio dos nascituros.
O que podemos esperar quando a Suprema Corte de um país reconhece que a Constituição só deve proteger a pessoa nascida, "residente, nata e naturalizada", e que "não há pessoa humana sem o aparato neural que lhe dá acesso às complexas funções do sentimento e do pensar" -e que, portanto, fora disso, é legítimo eliminá-la, negando-lhe o direito à vida?
Estamos, então, diante daquilo que Albert Camus chamou de "criminosos de lógica", em que "o crime se torna matéria de raciocínio".
O que o ministro Ayres Britto fez no Supremo Tribunal Federal foi uma apologia sofisticada àquilo que Camus chamou de "crime de lógica", porque, se prevalecer o seu voto, estará negado o direito à vida ao embrião humano, ao nascituro, enfim, ao ser humano não nascido, conforme a "teoria natalista" por ele assumida.
Continua Albert Camus: "O sentimento do absurdo, quando dele se pretende, em primeiro lugar, extrair uma regra de ação, torna o homicídio pelo menos indiferente e, por conseqüência, possível".
Para o ministro Ayres Britto, é indiferente o destino dos embriões humanos e dos nascituros, pois -como enfatizou- merece proteção constitucional só o ser humano nascido, dotado de seu perfeito aparato neural. Portanto, significa também privar do direito à vida os anencéfalos.
Como afirma Giorgio Filibeck, "a dignidade do ser humano ou é integral ou não é". Ayres Britto fez um recorte arbitrário ("o nascido dotado de aparato neural", coerente com o pensamento do neurologista sir John C. Eccles), criando, assim, a jurisprudência para os "crimes de lógica" a que se refere Albert Camus.
Porém, mesmo prevalecendo o seu "voto antológico", o aborto continuará sendo crime ante a lei natural, prática considerada muito grave por 71% da população brasileira segundo pesquisa realizada em outubro de 2007 pelo Datafolha, índice 10% maior em relação a pesquisa feita em 1998.
Mas o dado mais significativo dessa pesquisa foi que 87% da população ouvida condena a interrupção da gravidez por considerar essa prática moralmente incorreta. Diríamos nós, interpretando esse dado, que a maioria absoluta do povo brasileiro rejeita o aborto em qualquer fase da gestação do nascituro.
"Se o nosso tempo admite facilmente que o homicídio possua as suas justificações (pois foi o que fez o ministro Ayres Britto, decretando pena de morte ao embrião humano, ao nascituro, que já é ser humano), isso acontece devido à indiferença pela vida que caracteriza o niilismo", conclui Camus.


JAIME FERREIRA LOPES, 53, bacharel em direito, assessor parlamentar da Câmara dos Deputados, é coordenador nacional do Movimento Nacional em Defesa da Vida - Brasil Sem Aborto.
HERMES RODRIGUES NERY, 42, bacharel em história, é membro do Grupo de Trabalho em Defesa da Vida da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e coordenador do Movimento Legislação e Vida de Taubaté (SP).


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