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TENDÊNCIAS/DEBATES
O voto assombroso de Ayres Britto
JAIME FERREIRA LOPES e HERMES RODRIGUES NERY
Camus considerou a crise mais séria a que nos levou à revolta metafísica, em
que inteligências humanas voltaram as costas a Deus
DEPOIS DO pronunciamento do
ministro Carlos Ayres Britto
no STF (Supremo Tribunal
Federal), na histórica tarde de 5 de
março, indagamos: já chegamos ao
tempo da pós-humanidade? Aquele
discurso soou fundo, preconizando
um sombrio cenário huxleyano.
Em "L'Homme Révolté" (1951), Albert Camus faz reflexão profunda sobre a principal crise da nossa época: a
revolta metafísica, que ele tão bem
analisa para entender "a força corrosiva do niilismo ativo" de nossos dias.
De fato, Camus considerou a crise
mais séria de todos os tempos a que
nos levou à revolta metafísica, em que
grandes inteligências humanas voltaram as costas para Deus, ambicionando, numa obsessão patológica, tomar
o seu lugar na história, no afã de obter
o domínio completo da vida, em todas
as suas formas e dimensões.
Trata-se de uma revolução filosófica que pretende reduzir a zero "as
correntes metafísicas aristotélico-tomista e kantiana", como propõem
Mark Johnson e George Lakoff, apólogos do cientificismo, ancorados nas
neurociências.
Camus ressalta que, por causa dessa obsessão, há uma cumplicidade
com o mal, no jogo do vale-tudo.
As palavras do ministro Carlos Ayres Britto nos levam a pensar na lucidez de Camus, quando afirmou que
"há crimes de paixão e crimes de lógica (...) Os nossos criminosos já não
são aquelas crianças desarmadas que
invocavam o amor como desculpa.
Hoje, pelo contrário, são adultos, e o
seu álibi irrefutável é a filosofia, que
pode servir para tudo, até para transformar assassinos em juízes".
Sim, "a filosofia -ou a ideologia-,
que pode servir para tudo", inclusive
tornar legítimo o assassinato das
crianças não nascidas, o extermínio
dos nascituros.
O que podemos esperar quando a
Suprema Corte de um país reconhece
que a Constituição só deve proteger a
pessoa nascida, "residente, nata e naturalizada", e que "não há pessoa humana sem o aparato neural que lhe dá
acesso às complexas funções do sentimento e do pensar" -e que, portanto,
fora disso, é legítimo eliminá-la, negando-lhe o direito à vida?
Estamos, então, diante daquilo que
Albert Camus chamou de "criminosos de lógica", em que "o crime se torna matéria de raciocínio".
O que o ministro Ayres Britto fez
no Supremo Tribunal Federal foi
uma apologia sofisticada àquilo que
Camus chamou de "crime de lógica",
porque, se prevalecer o seu voto, estará negado o direito à vida ao embrião
humano, ao nascituro, enfim, ao ser
humano não nascido, conforme a
"teoria natalista" por ele assumida.
Continua Albert Camus: "O sentimento do absurdo, quando dele se
pretende, em primeiro lugar, extrair
uma regra de ação, torna o homicídio
pelo menos indiferente e, por conseqüência, possível".
Para o ministro Ayres Britto, é indiferente o destino dos embriões humanos e dos nascituros, pois -como
enfatizou- merece proteção constitucional só o ser humano nascido, dotado de seu perfeito aparato neural.
Portanto, significa também privar do
direito à vida os anencéfalos.
Como afirma Giorgio Filibeck, "a
dignidade do ser humano ou é integral ou não é".
Ayres Britto fez um recorte arbitrário ("o nascido dotado de aparato
neural", coerente com o pensamento
do neurologista sir John C. Eccles),
criando, assim, a jurisprudência para
os "crimes de lógica" a que se refere
Albert Camus.
Porém, mesmo prevalecendo o seu
"voto antológico", o aborto continuará sendo crime ante a lei natural, prática considerada muito grave por 71%
da população brasileira segundo pesquisa realizada em outubro de 2007
pelo Datafolha, índice 10% maior em
relação a pesquisa feita em 1998.
Mas o dado mais significativo dessa
pesquisa foi que 87% da população
ouvida condena a interrupção da gravidez por considerar essa prática moralmente incorreta. Diríamos nós, interpretando esse dado, que a maioria
absoluta do povo brasileiro rejeita o
aborto em qualquer fase da gestação
do nascituro.
"Se o nosso tempo admite facilmente que o homicídio possua as suas
justificações (pois foi o que fez o ministro Ayres Britto, decretando pena
de morte ao embrião humano, ao nascituro, que já é ser humano), isso
acontece devido à indiferença pela vida que caracteriza o niilismo", conclui Camus.
JAIME FERREIRA LOPES, 53, bacharel em direito, assessor parlamentar da Câmara dos Deputados, é coordenador
nacional do Movimento Nacional em Defesa da Vida - Brasil Sem Aborto.
HERMES RODRIGUES NERY, 42, bacharel em história, é
membro do Grupo de Trabalho em Defesa da Vida da CNBB
(Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e coordenador do Movimento Legislação e Vida de Taubaté (SP).
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