São Paulo, domingo, 21 de março de 2010

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TENDÊNCIAS/DEBATES


Deslocamentos urbanos: um fenômeno global

ANTÓNIO GUTERRES


Enquanto cerca de 730 milhões de pessoas viviam em zonas urbanas em 1950, agora são mais de 3,3 bilhões


O MUNDO passa por um processo de rápida urbanização. Em 1950, menos de 30% da população global vivia em cidades. Esse percentual subiu para mais de 50% e deverá chegar a 60% por volta de 2030. Em termos numéricos, as estatísticas são igualmente impressionantes. Enquanto cerca de 730 milhões de pessoas viviam em zonas urbanas em 1950, agora são mais de 3,3 bilhões. Como podemos explicar essas cifras dramáticas?
De certa forma, o processo de urbanização tem sido alimentado por migrantes que lutam para sobreviver longe de suas comunidades de origem e que são atraídos por melhores oportunidades, bens e serviços disponíveis em áreas urbanas.
O crescimento populacional também desempenha um papel importante na contínua expansão das cidades no mundo em desenvolvimento.
Mas essa é apenas parte da história.
Em muitos países, o processo de urbanização tem sido reforçado por fluxos de refugiados e pessoas deslocadas obrigadas a abandonar suas casas pelas ameaças de conflitos armados, violência política, ausência da lei e desastres naturais em seus países e comunidades de origem.
Ao mesmo tempo em que é difícil coletar estatísticas precisas relacionadas a esse fenômeno, está claro que os números são enormes. Segundo as estimativas mais recentes, a cidade de Cabul, capital do Afeganistão, cresceu sete vezes desde 2001, principalmente por causa da chegada de ex-refugiados vindos do Irã e do Paquistão e de deslocados que escapam da violência nas zonas rurais do país.
No Sudão, acredita-se que Cartum acomode pelo menos 1,75 milhão de deslocados e refugiados, cerca de 30% da população. Bogotá (Colômbia) e Abidjan (Costa do Marfim) absorveram meio milhão de vítimas de conflitos armados. No Oriente Médio, Damasco (Síria) e Amã (Jordânia) são um santuário para centenas de milhares de iraquianos que foram forçados a deixar seu país de origem.
O Brasil abriga cerca de 4.200 refugiados de 75 nacionalidades diferentes, e todos vivem em diferentes cidades do país. O fluxo de solicitantes de refúgio cresceu mais de 40% nos últimos seis anos.
Como demonstram esses exemplos, a questão do deslocamento urbano se tornou um fenômeno global, que cada vez mais preocupa as autoridades municipais, os governos nacionais e as organizações humanitárias e de desenvolvimento.
Muitas dessas pessoas que se movem para áreas urbanas para escapar de ameaças concretas às suas vidas se dão conta de que continuam vivendo em condições e circunstâncias extremamente arriscadas.
Assentadas em favelas ou comunidades carentes populosas, muitas são obrigadas a trabalhar no mercado informal, em que estão sujeitas à exploração e têm que competir com moradores locais pelas poucas oportunidades de geração de renda disponíveis.
Sua chegada também representa demandas adicionais para serviços públicos, como saúde e educação, e podem levar ao aumento nos preços de comida e habitação. Como resultado, cresce a possibilidade de tensão social, crime, violência e instabilidade política. O que podemos fazer para lidar com essa complicada situação?
Tradicionalmente, organizações humanitárias como o Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados) têm respondido a deslocamentos populacionais de grande escala de uma maneira convencional: distribuindo comida/água e estabelecendo campos, escolas e centros de saúde específicos para os deslocados.
Essa estratégia pode ser viável para zonas rurais. Mas não faz sentido em áreas urbanas, onde os que chegam vivem ao lado dos residentes, dividindo vizinha, acomodações, infraestrutura e serviços. Sendo assim, é necessário formular uma nova abordagem para o crescente desafio do deslocamento urbano, com base em três princípios relacionados.
É preciso ser inclusivo, combinando esforços de sociedade civil, autoridades nacionais, estaduais e municipais, organizações locais e internacionais, setor privado e, obviamente, os próprios moradores das cidades.
Também é necessário que essa abordagem seja desenvolvimentista e autossustentável, que leve em consideração necessidades de curto e longo prazo e apoiando um processo amplo de planejamento urbano e redução da pobreza.
Finalmente, uma nova abordagem para o deslocamento urbano deve fortalecer as comunidades pobres e em desvantagem, protegendo seus direitos e permitindo o uso produtivo dos seus recursos.


ANTÓNIO GUTERRES, ex-primeiro-ministro de Portugal, é o alto comissário das Nações Unidas para Refugiados.

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