UOL




São Paulo, segunda-feira, 21 de abril de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

A cobrança dos inativos é inconstitucional?

TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR.

O noticiário tem ressaltado que o governo vem falando da contribuição dos inativos como uma das medidas a serem discutidas na reforma da Previdência do funcionalismo público.
Objeto de polêmica, já no passado foi proposta por diversos Estados da Federação, como instrumento-chave do equilíbrio atuarial, com base na emenda constitucional nš 20/98. O Supremo tem entendido que a emenda, no entanto, seria inconstitucional naquele ponto. Mas o tema, sem dúvida, merece exame.
Do ângulo de sua história, a aposentadoria dos servidores públicos sempre foi considerada uma variável inerente ao seu trabalho, sendo assumida pelo Estado como um item previsto no Orçamento sob o ponto de vista da despesa. Isto é, os servidores, ao contrário dos demais trabalhadores, nunca foram obrigados a contribuir para a sua aposentadoria, assumida, então, pelos Tesouros como uma obrigação orçamentária.
Com o advento da emenda constitucional nš 20/98, aparece, pela primeira vez, a expressão "regime de previdência de caráter contributivo", que passa a constar do art. 40, caput, da Constituição Federal. Determina-se aí que sejam observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial. E manda-se que se apliquem àquele regime os requisitos e critérios fixados para o regime geral de Previdência Social, no que couber. Com base nessa expressão, o Supremo tem chegado, em juízos incidentais, à inconstitucionalidade da contribuição dos inativos, posto existir uma norma (CF, art. 195, II) que veda a incidência de contribuição sobre o custeio da aposentadoria e pensão concedidos no regime geral de todos os trabalhadores (CF, art. 201).
Na discussão existe uma confusão entre regime de custeio e regime de aposentadoria. O que se manda é que o regime dos servidores observe, no que couber, o regime geral, não o modo de custeio. Assim, o próprio art. 195, II, da Constituição, ao criar a imunidade para aposentadoria e pensões concedidos pelo regime geral, diz que este é tratado no art. 201. É neste art. 201 que estão os critérios e requisitos do regime, a serem aplicados no que couber. Ou seja, a imunidade do art. 195, II, refere-se a custeio da seguridade social. Não é requisito do regime, mas do custeio. Assim, incluir a própria imunidade entre requisitos e critérios do regime é transformar o modo como se sustenta o regime em modo como alguém se aposenta.


Estamos longe de uma aceitação inconteste de que imunidade de servidores inativos é uma "cláusula pétrea"


Se a imunidade do custeio (art. 195, II) fosse requisito ou critério do regime (art. 201), é como se estivesse dito: para se aposentar, o trabalhador não deve contribuir sobre os seus proventos de inativo. Se o requisito não for preenchido, ele não pode se aposentar!
Ademais, ainda que se admitisse tal "nonsense", a expressão "no que couber", referente ao regime, não ao custeio, tem de levar em conta a exigência de que o caráter contributivo dos respectivos regimes previdenciários observe critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, obviamente sujeito a necessidades distintas, num e noutro caso.
Afinal, as contribuições sociais dos trabalhadores (CF art. 149, caput) e as contribuições dos servidores, previstas no parágrafo único do mesmo artigo, têm natureza diferente. Estas têm sua exigência justificada a partir do momento em que a pessoa se torna servidora pública, passando a estar vinculada a um regime próprio de Previdência e assistência social, por força do regime que define seu peculiar relacionamento com o poder público.
Daí a noção de que o servidor, propriamente, não se desligaria totalmente de sua condição nem do seu "empregador", ao cessarem suas atividades, submetido, ainda, a restrições, como a de ter cassada a aposentadoria por faltas cometidas quando em atividade, bem como usufruindo de certas vantagens, como se ativo fosse -como, por exemplo, o valor integral da correspondente remuneração dos ativos.
Por último, um argumento histórico, invocado nas decisões do STF, admite nuances significativas. Com efeito, se é verdade que, no projeto original, havia a expressa inclusão da possibilidade de incidência de contribuição para os proventos de inativos e de seus pensionistas, mas isto teria sido rejeitado (donde a conclusão: se rejeitado, então não quisto), também é verdade que, no mesmo processo legislativo, houve proposta de expressa exclusão daquela possibilidade, a qual também foi rejeitada (donde a conclusão inversa: se rejeitada a exclusão expressa, esta não foi quista).
Desse processo resultou, antes, uma omissão que autoriza a dizer que a emenda finalmente aprovada deixou a questão indefinida. Essa omissão, em verdade, solucionava um impasse sobre o que não havia consenso, e dessa falta de consenso resultou uma proposta politicamente viável de indefinição, a ser preenchida pelo legislador ordinário.
Em suma, estamos longe de uma aceitação inconteste de que imunidade de servidores inativos é uma espécie de "cláusula pétrea" nas negociações referentes à reforma previdenciária, mormente quanto às diferenças entre servidores públicos e trabalhadores em geral, até para a viabilidade da manutenção de algumas delas sob outras perspectivas e de outros ângulos.


Tercio Sampaio Ferraz Júnior, 61, advogado, é professor titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP. Foi procurador-geral da Fazenda Nacional (governos Collor e Itamar).


Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Maria José Pereira da Silva O'Neill e Cosmo Palásio de Moraes Jr.: Porque é preciso renascer

Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.