São Paulo, quinta-feira, 21 de abril de 2005

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DEMÉTRIO MAGNOLI

Pardos

"Veja, até você provar que um ato discriminatório é racismo, a pessoa desiste, pois é considerado como injúria. É considerado como qualquer coisa, menos racismo, justamente porque quem julga são os brancos. Quem julga são as pessoas que manejam a lei." O conceito é da ministra Matilde Ribeiro, da Secretaria da Igualdade Racial. Se isso é verdade, a "raça" é o fator determinante na esfera política e só juízes negros podem aplicar a lei, ao menos nos casos de processos de racismo. Mas quem é negro?
No Censo 2000, postos diante das opções de "cor ou raça" do IBGE, 39% dos declarantes identificaram-se como "pardos" e 6% como "pretos". Quem são os "pardos"? O racismo do século 19 imaginava-os como o produto da miscigenação entre as "raças" branca e negra, mas a genética moderna, que nega a existência de raças humanas, mostrou que quase 90% da população brasileira tem significativa ancestralidade africana.
O dicionário oferece, entre as definições de "pardo", a seguinte: "branco sujo, duvidoso".
ONGs do movimento negro reivindicaram a substituição das opções "pardo" e "preto" pela opção "negro" nas pesquisas oficiais no Brasil. O IBGE realizou ensaios nessa linha, que resultaram na migração da grande maioria dos declarantes que se identificavam como "pardos" para a opção "branco". Diante da hipótese de radical "redução" da participação dos negros na população brasileira, as ONGs renunciaram à mudança.
As elites do Império do Brasil interpretavam como sua missão a criação de uma civilização moderna nos trópicos. Mas o Brasil, aos olhos dessas elites, não poderia ocupar um lugar destacado no concerto das nações, pois era um "país de negros". O dilema encontrou solução no "branqueamento", um empreendimento histórico conduzido por meio da promoção da imigração européia e da valorização ideológica da mestiçagem. Um dos frutos desse empreendimento foi o surgimento dos "pardos", os quase-brancos da nação "européia" que se aclimatava à natureza tropical.
Nesse Censo Escolar 2005, uma diretora de escola de Belo Horizonte "corrigiu", por conta própria, todas as fichas de alunos que se declararam "pardos", transformando-os em "pretos". A diretora trapaceou, mas o resultado que obteve é a meta de uma vertente significativa do movimento negro: a construção de uma raça negra no Brasil. Esse programa de reengenharia racial almeja "retificar" a obra do Império, passando uma borracha sobre a mestiçagem e suprimindo os "pardos".
A Secretaria da Igualdade Racial tornou-se o centro coordenador desse programa, que é uma política de Estado. Seu instrumento principal são os sistemas de cota "racial" em universidades públicas. A qualificação de "pretos" e "pardos" para as cotas funciona como uma "pedagogia racial", na expressão sugerida pelo sociólogo Marcos Chor Maio e pelo antropólogo Ricardo Ventura Santos, pois os dois grupos "aprendem" a identificar-se como "negros". (O artigo de Maio & Santos sairá na revista "Horizontes Antropológicos", nš 23).
Raças humanas são invenções culturais do poder político. O Império fabricou os "pardos". O Estado entrega-se agora à fabricação de um país de "brancos" e "negros", isento de meios-tons. Invertem-se os sinais de valor à custa da atualização, da legitimação e da oficialização do artigo de fé do racismo, que é a classificação racial dos cidadãos.


Demétrio Magnoli escreve nesta coluna às quintas-feiras
@ - magnoli@ajato.com.br


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