São Paulo, terça-feira, 21 de maio de 2002

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

A civilização brasileira e seu futuro

Pode o Brasil construir civilização original que traga proveito e alento à humanidade?
Não importa que nos falte uma cultura secular e centrada em si, como a da China ou a da Índia. Nossa cultura é a do Ocidente. A mensagem emancipadora da cultura ocidental se renova pelo aprofundamento de suas variações nacionais e pela rebelião contra as ideologias caras às potências dominantes de cada época. Em época de democracia, a profecia fala mais alto do que a memória: a originalidade a construir conta mais do que as diferenças herdadas.
O cerne da civilização brasileira está na insistência em reconciliar a vitalidade com a ternura. É uma variante da dialética mais importante na formação da cultura ocidental: a luta entre a idéia pagã da grandeza e a idéia cristã do amor. A tentativa de juntá-las está na raiz de todas as maiores realizações do gênio brasileiro. E ajuda a decifrar o enigma decisivo da nossa vida nacional: a coexistência de uma energia imensa, difusa, frustrada, quase cega, com uma doçura, um calor humano, que sobrevivem, misteriosamente, aos traumas da vida quotidiana no Brasil.
A sentimentalização das trocas desiguais, que pautou a vida social brasileira, foi uma maneira mentirosa e opressora de reconciliar a vitalidade com a ternura. Agora que o Brasil começa a destruir o regime do favor e da prepotência no dia-a-dia, teremos de ver esfriado nosso calor e contida -porque disciplinada- nossa energia? Ou será possível afinal celebrar o casamento do ardor com a suavidade, como quer o coração brasileiro?
Depende das respostas que dermos a três conjuntos de problemas práticos. A energia está sem meios. Ela irradia das práticas de auto-ajuda econômica, educativa, física e espiritual que vêm transformando silenciosamente o Brasil. A massa popular aspira ascender à condição do pequeno empreendedor, do técnico, do profissional. A tarefa é dar aos emergentes, atuais ou potenciais, acesso ao ensino capacitador, ao crédito e à tecnologia. Assegurar-lhes as vantagens da escala produtiva, quer pela associação com grandes empresas, quer pela aliança com o Estado, quer pelos mutirões de recursos e de esforços. E engajá-los em responsabilidades sociais que os afastem do egoísmo familiar.
A doçura está sob ameaça. Ela assenta na vida da família, precária e desestruturada para parte cada vez maior da população. Dar apoio à mãe e a seus filhos. Ampliar as redes de creches e de escolas de apoio integral que envolvam as crianças num manto protetor. Fazer do associativismo comunitário o complemento da família desfalcada. Reformar leis e pagar subsídios para que as mães possam trabalhar em empregos de tempo parcial e cuidar dos filhos.
E tanto a energia quanto a doçura estão envenenadas pela mistura da desigualdade com o racismo. Identificar, em todas os níveis do ensino, as crianças pobres e de cor mais aplicadas e talentosas e promovê-las é a iniciativa de maior impacto. Impacto imediato, pela revolução de expectativas que geraria. E potencializado pela proliferação de escolas públicas que sejam melhores do que as particulares.
Não, não é preciso esfriar o calor nem cercear a energia para instaurar a decência e a justiça no Brasil. Com pouco, poderemos fazer muito para reconciliar a pujança com a ternura, se soubermos onde começar o trabalho de reorganização nacional. E se tivermos diante dos olhos uma visão do nosso engrandecimento.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.

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