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ROBERTO MANGABEIRA UNGER
A civilização brasileira e seu futuro
Pode o Brasil construir civilização original que traga proveito e
alento à humanidade?
Não importa que nos falte uma cultura secular e centrada em si, como a
da China ou a da Índia. Nossa cultura
é a do Ocidente. A mensagem emancipadora da cultura ocidental se renova
pelo aprofundamento de suas variações nacionais e pela rebelião contra
as ideologias caras às potências dominantes de cada época. Em época de
democracia, a profecia fala mais alto
do que a memória: a originalidade a
construir conta mais do que as diferenças herdadas.
O cerne da civilização brasileira está
na insistência em reconciliar a vitalidade com a ternura. É uma variante da
dialética mais importante na formação da cultura ocidental: a luta entre a
idéia pagã da grandeza e a idéia cristã
do amor. A tentativa de juntá-las está
na raiz de todas as maiores realizações
do gênio brasileiro. E ajuda a decifrar
o enigma decisivo da nossa vida nacional: a coexistência de uma energia
imensa, difusa, frustrada, quase cega,
com uma doçura, um calor humano,
que sobrevivem, misteriosamente, aos
traumas da vida quotidiana no Brasil.
A sentimentalização das trocas desiguais, que pautou a vida social brasileira, foi uma maneira mentirosa e
opressora de reconciliar a vitalidade
com a ternura. Agora que o Brasil começa a destruir o regime do favor e da
prepotência no dia-a-dia, teremos de
ver esfriado nosso calor e contida
-porque disciplinada- nossa energia? Ou será possível afinal celebrar o
casamento do ardor com a suavidade,
como quer o coração brasileiro?
Depende das respostas que dermos
a três conjuntos de problemas práticos. A energia está sem meios. Ela irradia das práticas de auto-ajuda econômica, educativa, física e espiritual que
vêm transformando silenciosamente
o Brasil. A massa popular aspira ascender à condição do pequeno empreendedor, do técnico, do profissional. A tarefa é dar aos emergentes,
atuais ou potenciais, acesso ao ensino
capacitador, ao crédito e à tecnologia.
Assegurar-lhes as vantagens da escala
produtiva, quer pela associação com
grandes empresas, quer pela aliança
com o Estado, quer pelos mutirões de
recursos e de esforços. E engajá-los em
responsabilidades sociais que os afastem do egoísmo familiar.
A doçura está sob ameaça. Ela assenta na vida da família, precária e desestruturada para parte cada vez maior
da população. Dar apoio à mãe e a
seus filhos. Ampliar as redes de creches e de escolas de apoio integral que
envolvam as crianças num manto
protetor. Fazer do associativismo comunitário o complemento da família
desfalcada. Reformar leis e pagar subsídios para que as mães possam trabalhar em empregos de tempo parcial e
cuidar dos filhos.
E tanto a energia quanto a doçura estão envenenadas pela mistura da desigualdade com o racismo. Identificar,
em todas os níveis do ensino, as crianças pobres e de cor mais aplicadas e talentosas e promovê-las é a iniciativa
de maior impacto. Impacto imediato,
pela revolução de expectativas que geraria. E potencializado pela proliferação de escolas públicas que sejam melhores do que as particulares.
Não, não é preciso esfriar o calor
nem cercear a energia para instaurar a
decência e a justiça no Brasil. Com
pouco, poderemos fazer muito para
reconciliar a pujança com a ternura, se
soubermos onde começar o trabalho
de reorganização nacional. E se tivermos diante dos olhos uma visão do
nosso engrandecimento.
Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.idj.org.br
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