São Paulo, domingo, 21 de maio de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

O inimigo é o crime

JOSÉ SERRA

As democracias reconhecem que apenas ao Estado é facultado o uso legítimo da força. Muitos não se dão conta da sabedoria desse princípio. Ele supõe que a sociedade elabora um contrato que define os entes que podem usar da coação para fazer valer a vontade coletiva, consubstanciada nas leis.
Por isso, qualquer manifestação sobre os graves episódios que acometeram São Paulo deve, de saída, prestar a imediata solidariedade à polícia e aos policiais e suas respectivas famílias, tanto àqueles que tombaram no cumprimento do seu dever como àqueles que se arriscam diuturnamente para fazer valer o Estado de Direito. Eles são o braço da sociedade na luta contra o crime e a primeira muralha que protege o regime democrático. E, mais do que nunca, devem ser valorizados.


Nessa guerra, é preciso ter lado. E não esquecer: o inimigo é o crime. Vamos combatê-lo. Vamos eliminá-lo


A solidariedade deve estender-se à população de São Paulo, que trabalha, paga (muitos) impostos e quer a proteção necessária para viver em paz enquanto trava a difícil luta por melhores oportunidades na vida para seus filhos. Atravessou momentos angustiantes, aflitivos, que pude bem avaliar nas reiteradas conversas com meus familiares e amigos.
Às pessoas de bem só cabe uma postura. De maneira clara, direta, insofismável, sem ambigüidades, é preciso dizer: "Somos contra o crime; somos contra os criminosos que nos desafiam, que desafiam as leis, que desafiam as regras da convivência civilizada, que desafiam o poder público, síntese da vontade de todos os cidadãos".
O que aqui se diz parece óbvio, mas não é. Nos momentos de crise, é fácil perder o foco. A crítica ao Judiciário, aos governos, à polícia, ao Ministério Público, à legislação, à desigualdade social, às falhas do sistema educacional, tudo isso pode ser mais ou menos pertinente. Mas é preciso distinguir o essencial do circunstancial. E o essencial é identificar o inimigo. Até para que não se cometam injustiças fazendo baixa sociologia.
Não existe, por exemplo, uma contradição ou uma oposição entre escolas e presídios. Estabelecê-la é criar uma falsa relação de causa e efeito entre a pobreza e o crime. Os pobres, à diferença do que pensam os seus falsos tutores, são dotados de uma severa moralidade. E a esmagadora maioria escolhe o caminho da luta incansável para sobreviver, não o da delinqüência.
Não, os inimigos da sociedade não são os promotores, não são os policiais, não são os agentes penitenciários, não são as operadoras de telefonia, não são os secretários de Estado, não são os governadores, não são os ministros, não são os políticos de partidos adversários. Se nos entregarmos a esta disputa fratricida, ganha o inimigo verdadeiro: o crime organizado. O uso político ou eleitoral desta guerra só fortalece os bandidos e só compete para solapar o Estado de Direito.
Não custa lembrar que, do lado das quadrilhas, há coesão. Os cidadãos de bem é que se mostram divididos. Tais diferenças devem convergir na busca do bem comum. A história dos países abalados pelo crime organizado mostra que as quadrilhas começam desafiando a lei e o poder público e acabam se infiltrando no aparelho de Estado, nos partidos políticos, nas organizações sociais. Podem eleger deputados, prefeitos e até governadores. Chegam a impor presidentes por meio de golpe de Estado, como já aconteceu na Bolívia com o general García Meza, no começo dos anos 80.
Nesta guerra, não somos, nem podemos ser, espectadores, comentaristas ou oportunistas. Não podemos nos conformar ou considerar que o problema é só das "autoridades" ou que se trata de uma guerra do governo contra uma facção criminosa. A guerra, queiramos ou não, é coletiva.
É claro que um país em que a economia tem um crescimento medíocre e onde grassa a impunidade, mais facilmente a violência se alastra. Mas que se note: os pobres, a exemplo do conjunto dos brasileiros, são reféns dos criminosos. O crime se organiza onde falece o Estado, que deve ter a capacidade de discernir o homem de bem do que transgride as normas democraticamente pactuadas. Por isso, urge que a sociedade e todos os homens públicos comprometidos com a democracia dêem seu integral e irrestrito apoio ao pacote de medidas já aprovado pelo Senado. Não resolve tudo, não é uma panacéia, não substitui a ação decidida de todas as autoridades, mas é um conjunto positivo de medidas.
Dentre as propostas, merece menção especial a que permite que pessoas ligadas ao crime organizado fiquem em regime de segurança máxima por até 1.440 dias, a obrigação das concessionárias de telefonia de instalar bloqueadores nos presídios e a consideração de que a posse de celulares ou outros instrumentos de comunicação pelos presos passe a ser uma falta grave. Às propostas do Senado, que seguem para a Câmara, sugiro outras duas: aumento da pena mínima para crimes praticados contra policiais, procuradores, agentes penitenciários, juízes e promotores, quando no exercício da função, bem como daquela aplicada a quaisquer desses servidores quando flagrados em associação com criminosos.
A sociedade brasileira certamente se dedicará a este urgente debate e tem de cobrar das autoridades dos três Poderes respostas rápidas, eficientes, à altura do risco a que todos estamos expostos. Em São Paulo, o empenho e a franqueza do governador Lembo, cuja integridade moral é bem reconhecida, facilita e até estimula o debate, as cobranças e a mobilização. Vamos a eles. Nessa guerra, é preciso ter lado. E não esquecer: o inimigo é o crime. Vamos combatê-lo. Vamos eliminá-lo.

JOSÉ SERRA, 64, economista, é o pré-candidato do PSDB ao governo de São Paulo. Foi senador pelo PSDB-SP (1995-2002), ministro do Planejamento e da Saúde (governo Fernando Henrique Cardoso) e prefeito de São Paulo (2005-2006).


Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Jeferson Péres: 'Concertación' enquanto é tempo

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.