São Paulo, quinta-feira, 21 de maio de 2009

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Não me toques

SYLVIO BARROS SAWAYA


Tombar um edifício por seu valor histórico e deixá-lo impróprio ao uso é resultado de crendice temerosa e idolatria deslocada

A COMUNIDADE de alunos, professores e funcionários da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP pede uma maior definição sobre os projetos de reformas do edifício projetado por Vilanova Artigas nos anos 1960. Já estão disponíveis os recursos para efetuá-las, garantindo a manutenção do edifício.
A reforma do prédio da FAU-USP requer uma discussão sobre o espaço físico na universidade e sobre a preservação do patrimônio público.
Há uma diferença entre sagrado e fetiche. O sagrado, permanente e fundamental, deve ser preservado; o fetiche, carregado de idolatria e de crenças, não se pode aceitar.
A sociedade laica e profana perdeu o sentido do sagrado e, hoje, o procura ansiosamente nas árvores, nos animais e nos objetos, por entender que a vida é sagrada e, portanto, suas manifestações falam disso.
Os japoneses reconstroem seus milenares templos sagrados de tempos em tempos com os mesmos materiais e com as técnicas ciosamente preservadas e, assim, lhes dão perenidade.
Isso obrigou a uma revisão da ideia de preservação, fazendo-a mais imaterial, voltando-se para os rituais e para as solenidades da sociedade que os utiliza e os preza, inclusive em seus processos de construção.
A expressão física é diferente da material. A perda das condições físicas de um objeto não implica perda de sua materialidade. Continua presente como forma, sentidos, volumes e significações, e pode ser recuperada. O sagrado é o refinamento maior da cultura de um povo e de uma sociedade.
Quando Vilanova Artigas dizia que o edifício por ele projetado era um templo, não falava apenas de um repertório ou de uma linguagem. O prédio da FAU tem uma dimensão universal, fruto de grandes e intensas discussões sobre o significado da arquitetura para a sociedade no momento em que o Brasil se afirmava contemporâneo, moderno e independente.
Vilanova Artigas, além de autor do projeto do edifício da FAU, foi líder da reforma do ensino de arquitetura, implantada em 1962. Baseada na ideia de que os objetos devem ser concebidos em todos os tamanhos e dimensões de forma una, a reforma transformou-se em modelo mundial. Pensar uma xícara ou um território se faz da mesma maneira. Antecipando a relativização na sociedade globalizada que viria, propõe uma coordenação dos sentidos e significados dos objetos, de maneira a expressarem o que somos e o que queremos.
As considerações sobre a preservação do patrimônio e o sentimento vívido por se estar mexendo em algo intocável merecem ser mediatizados pela necessidade de que não chova dentro do prédio, de que diminua o barulho ensurdecedor dos pingos d'água e do granizo, de que se controle a poeira que obriga a limpar as mesas e os pisos ao menos duas vezes por dia.
O edifício da FAU possui uma estrutura firme, mas seriamente afetada, dizem os técnicos e especialistas. Os dutos verticais não dão conta de escoar a água das chuvas, principalmente quando elas são intensas. As vigas que constituem os domos fletiram, e o concreto apresenta fissuras, muitas vezes congênitas.
É de responsabilidade administrativa sanar essas precariedades sem afetar o patrimônio público, dando-lhe condições para sobreviver por mais algumas décadas, enquanto se encontram as técnicas e os recursos para reconstituí-lo. Manter é preservar, e os toques necessários para isso não se constituem em "pecados", por não alterarem em nada o que se quer preservado na sua materialidade.
Intensas discussões internas repercutiram na imprensa e chegaram a um denominador comum: a elaboração de um plano diretor para o conjunto da FAU-USP por profissionais do mais alto nível e a revisão das propostas pelos organismos da faculdade, e as obras já contratadas terão continuidade.
Os recursos, da ordem de R$ 5,6 milhões, estão disponíveis desde o fim de 2008 e deverão ter sua aplicação definida até 15 de julho, ou serão realocados. Os projetos foram encaminhados aos órgãos municipais e estaduais de preservação do patrimônio em janeiro deste ano. Faltam três meses para a definição específica do emprego desses recursos. A urgência do prazo para tomar as providências necessárias pode tornar impossível a aplicação dessa verba.
Tombar o edifício por seu valor histórico e deixá-lo impróprio para o uso, convivendo com a sua ruína, é consequência de crendice temerosa e idolatria deslocada. Postergar, indefinidamente, o encontro de soluções e sua operacionalização é inviável. O diálogo eficaz se impõe.


SYLVIO BARROS SAWAYA , arquiteto, é professor e diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.

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