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São Paulo, sábado, 21 de junho de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Deve haver regras específicas na Previdência para o Judiciário?

SIM

Por um Estado fortalecido

CLÁUDIO BALDINO MACIEL

Quando os homens saíram das cavernas e criaram a mais rudimentar organização sociopolítica, ela se fundou na defesa do território e na distribuição organizada da justiça. Os profissionais do direito, então, substituíram os tacapes. Nasceu, assim, com a distribuição da justiça, a semente do Estado. Após séculos de civilização, nas democracias tem sido a Justiça equidistante do poder político e dos cidadãos, independente e autônoma dos demais poderes do Estado.
Tal atividade, portanto, gênese do Estado desde a mais incipiente organização da "pólis", é essencial à sua existência e com ele ontologicamente se confunde. Jurisdição e Estado são uma única face da organização político-social. Privatizar a distribuição da justiça, se fosse possível, seria a destruição fática do próprio Estado, além da desconstrução de seu significado político e jurídico. Quando se trata, portanto, de destacar o Poder Judiciário do debate da reforma da Previdência Social, protegendo tal função essencial com regras dotadas das mesmas especificidades existentes quanto a vedações e limitações impostas aos magistrados, não é de questão remuneratória e interesses econômicos conjunturais que se trata, senão de compreensão política do que é o eixo institucional da nação e, portanto, da estrutura do Estado de Direito democrático.
A blindagem dos membros do Poder Judiciário, nas democracias, contra a potencialidade das influências políticas e econômicas, consiste em um sistema de vedações desconhecidas em outras atividades públicas ou privadas (no Brasil: impedimento de participação na vida político-partidária, de associação para fins comerciais, de exercer outra atividade remunerada, exceto o cargo de professor, dentre outras). Compõe-se também de prerrogativas (inamovibilidade, irredutibilidade de vencimentos, vitaliciedade) garantidoras de estabilidade remuneratória absolutamente necessária à natureza singular e especialíssima da função de julgar conflitos de todos os matizes em uma sociedade a cada dia mais complexa e aguerrida.
Por isso, o modelo vigente no Brasil sempre conferiu aos membros do Poder Judiciário, no plexo das vitais prerrogativas citadas, aposentadoria com proventos integrais e paridade com os vencimentos dos profissionais em atividade. Acaso demande o sistema previdenciário público aperfeiçoamento de aspectos atuariais decorrentes de fatores contributivos, de idade ou tempo de serviço mínimo na carreira, a magistratura está pronta a colaborar, preservando-se, porém, justas regras de transição e, em qualquer hipótese, a integralidade e a paridade de vencimentos e proventos, porque inerentes às prerrogativas funcionais da irredutibilidade de vencimentos e da vitaliciedade, postas em garantia dos cidadãos e das próprias instituições democráticas.
Romper esse modelo significará, certamente, debilitar a carreira, diminuir o Judiciário, retirar atrativos para que bons quadros do direito submetam-se a concursos rigorosíssimos e a uma vida de mudanças de comarcas e de privações não conhecida em outros segmentos da atuação na área jurídica. Se o mercado oferece mais atrativos, só o profissional que ali não tem chance, por insuficiência técnica ou por falta de esforço pessoal, escolherá a carreira de Estado. A decorrência imediata será a desqualificação da magistratura nacional e a fragilização da instituição. Perde a democracia e perdem os cidadãos.
Além de temerária tal hipótese em qualquer momento, no atual estágio da vida nacional ela resulta em notável despropósito: com os altos índices de criminalidade em trajetória ascendente, com a sociedade refém do medo, não serão essas questões fundamentais para o futuro do Brasil enfrentadas por ONGs ou atividades privadas. O Estado brasileiro, conquanto deva ser enxuto, há de ser forte para, em qualquer projeto de futuro democrático e justo, estar apto a promovê-lo em parceria com a iniciativa privada. Debilitar a magistratura -e também, por semelhantes pressupostos, o Ministério Público- significa atingir o Estado brasileiro em sua coluna vertebral, fragilizando a viga mestra de sustentação de seu já frágil edifício institucional.
A cidadania esclarecida compreende os princípios ora referidos. Os que julgam que uma sociedade só se faz com números, e os que não têm discernimento cívico para compreender a relevância e profundidade política da questão, não compreendem. Confia-se que o Poder Legislativo cumpra uma vez mais sua tarefa, com sabedoria para julgar o que é melhor para o Brasil e com coragem para decidir a tal respeito, mesmo contra o coro demagógico da superficialidade da análise.


Cláudio Baldino Maciel, 47, desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, é presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros.


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