São Paulo, quarta-feira, 21 de junho de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Aids fica jovem, feminina e pobre

JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI

A DECLARAÇÃO FINAL da Conferência de Alto Nível sobre Aids, realizada nas Nações Unidas nos primeiros dias deste mês, iniciou-se com as seguintes palavras: "(...) catástrofe sem precedentes (...). Temos 65 milhões de pessoas infectadas, 25 milhões de mortes, 15 milhões de crianças órfãs e 40 milhões de pessoas que vivem hoje com Aids, 90% delas nos países em desenvolvimento" e continua, "as mulheres representam hoje mais da metade das pessoas com Aids". Temos no Brasil 620 mil casos registrados da doença. A previsão da OMS (Organização Mundial da Saúde) para o ano 2000 era de 1,2 milhão. Ela só não se confirmou devido à política correta de tratamento e prevenção implantada a partir de 1996 pelo então ministro da Saúde, José Serra, incluindo aí o enfrentamento de "trustes" e a fabricação de genéricos.


A epidemia mudou suas características, e falta hoje uma política de controle que vista essa sua nova face


A mortalidade diminuiu 48% e a estratégia brasileira foi elogiada nessa reunião que congregou ministros da Saúde da maioria dos países e da qual participei, representando o Congresso Nacional. Os bons resultados se devem também ao fato de a epidemia ter atingido, como nenhuma outra, na sua fase inicial, as classes mais favorecidas economicamente, o que motivou a ajuda de 900 ONGs, o apoio da sociedade civil organizada e evitou as oscilações que caracterizam as políticas públicas brasileiras.
Apesar desses meritórios esforços, temos hoje uma incidência de 19 para cada grupo de 100 mil pessoas, que é considerada alta. Porém, o que mais preocupa é a mudança da epidemia, que se tornou jovem, feminina e pobre. Nos anos 80, tínhamos uma mulher infectada para grupo de 40 homens. Hoje, temos uma mulher para cada homem e as mais afetadas são as jovens e pobres da periferia dos grandes centros urbanos.
Com a apresentação desses dados, foi possível, junto com alguns outros países africanos e os próprios Estados Unidos, colocar vários parágrafos relativos à mulher na declaração final: "(...) oferecendo acesso à educação e informação, fortificando sua independência econômica e sua habilidade de auto proteger-se (...) uma vez que as desigualdades de gênero e a violência contra a mulher aumentam sua vulnerabilidade contra a Aids".
Apresentamos duas pesquisas clínicas brasileiras que podem ajudar a compor uma política que enfrente essa nova face epidemiológica da doença. Em uma delas, do Hospital Pérola Byington, que testou a camisinha feminina, 80% das mulheres e 65% dos homens se declararam satisfeitos com seu uso. Em geral, é o homem quem decide lugar e hora da relação sexual, inclusive o uso do preservativo. Mas é a mulher que se infecta com a alta prevalência do vírus no esperma humano. A camisinha feminina permite à mulher tomar a decisão de se auto proteger, não necessita da ereção e tampouco da interrupção da relação amorosa para ser colocada.
Nesse mesmo hospital demonstramos, pela primeira vez em mulheres vítimas de violência sexual, que, com o uso preventivo do "coquetel" anti-Aids, não houve em nenhum dos 186 casos estudados desenvolvimento da infecção por HIV, em comparação com os 3% de contaminação nas que não usaram.
A epidemia mudou suas características e falta hoje uma política de controle que vista essa sua nova face.
O pior é que ela não está suscitando mais a mesma ajuda entusiasmada das ONGs e da sociedade civil, que deveria ocorrer agora não pelo estímulo da auto proteção, mas com a consciência da solidariedade em nome da qual precisamos voltar o olhar para a África. Nos países subsaarianos e na África do Sul, habitam mais de 50% dos casos de Aids do mundo. Em Botsuana há 30% de pessoas com HIV.
Uma das conclusões da Conferência foi a de que os países desenvolvidos precisam multiplicar por 4 ou 5 sua ajuda, pois serão necessários US$ 22 bilhões/ano para reverter a epidemia.
Os discursos dos países mais pobres foram de organização de suas políticas de saúde e pedidos de maior ajuda; o dos desenvolvidos, de aportar mais recursos. Todos aplaudidos. É preciso garantir o cumprimento das promessas de ambos e para isso a ONU deve sair de sua cômoda posição de imparcialidade descompromissada, lamentada por Bobbio no seu "Il Terzo Assente" e impedir que a ganância da indústria farmacêutica continue a ocasionar a morte de milhões de pessoas.
JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI é deputado federal (PFL-SP), professor emérito da USP e da Unicamp e ex-reitor da Unicamp.


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