São Paulo, quinta-feira, 21 de julho de 2005

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DEMÉTRIO MAGNOLI

Robin Hood às avessas

O sistema de "barracão" existe desde os tempos coloniais, mas não desapareceu por completo. Trabalhadores rurais endividam-se junto ao fazendeiro, que financia o seu transporte até a propriedade. O armazém da fazenda (o "barracão") fornece instrumentos de trabalho, vestimenta e alimentos, debitando o custo na conta dos trabalhadores. Como os salários miseráveis jamais permitem a quitação da dívida, o resultado é o trabalho compulsório, que se prolonga indefinidamente sob o controle de milícias privadas.
O empréstimo com desconto em folha, apresentado por Lula como uma política social, baseia-se no mesmo princípio que o sistema de "barracão": a garantia do crédito é a renda do trabalho, sob as formas de salário ou aposentadoria. O crédito consignado, como foi batizada essa modalidade de desvio da renda dos pobres para o caixa dos bancos, tornou-se o produto financeiro de maior sucesso no mercado, ostentando crescimento de 120% no último ano. Em maio, somou R$ 17,8 bilhões, muito mais que o cheque especial (R$ 12 bilhões) e o cartão de crédito (R$ 10,2 bilhões), e proporcionou aos bancos de financiamento a liderança no ranking de retorno sobre o patrimônio líquido, que antes pertencia aos bancos de varejo. Coincidentemente, o BMG, vaquinha leiteira do PT, responde sozinho por 40% dos empréstimos a mais de 2,5 milhões de aposentados e pensionistas do INSS.
As vítimas principais do "barracão financeiro" são pessoas de baixa renda, muitas das quais sem acesso a talão de cheque. O limite de comprometimento da prestação é de 30% da renda mensal. Os juros anuais variam de modo bizarro, desde o abusivo piso médio de 36% até estratosféricos 77%, assegurando rentabilidades reais fantásticas com risco quase nulo. O governo federal, promotor do crime contra a economia popular, também subsidia os bancos por meio de uma torrente de propaganda do produto financeiro privado.
Na sua publicidade indecorosa, o governo proclama que propiciou ao povo acesso ao sistema financeiro. A verdade é o contrário: o golpe do crédito consignado ofereceu às instituições financeiras acesso ao mercado popular. Esse mercado era dominado pelas redes de varejo de eletrodomésticos, que fingem vender geladeiras para vender crediário, e pelos agiotas, que não escondem seu negócio. As primeiras embutem nos juros o risco de inadimplência. Os segundos cobram dívidas por meios consagrados.
Os bancos, avessos ao risco e à violência privada, permaneciam à margem do lucrativo filão, até que um governo popular lhes ofereceu uma milícia virtual, que é o seqüestro automático da renda do devedor. Agora, eles partilham o butim com as quadrilhas tradicionais de bandoleiros do crédito popular. Mas o agiota não perde sua função, pois o comprometimento antecipado da escassa renda dos trabalhadores gera demanda por empréstimos de emergência.
O novo sistema de "barracão" foi abençoado por um Superior Tribunal de Justiça que, tratando a Constituição como papel de embrulho, ignorou a regra que diz que o salário é impenhorável. O presidente do STJ, Edson Vidigal, o mesmo que classificou como "incabível" a abertura dos arquivos da ditadura, recebeu o agradecimento pessoal de Lula uma hora após o julgamento. Em campanha permanente por uma cadeira no Supremo, Vidigal parece não se opor à revogação de nenhum princípio jurídico que possa cercear a vontade dos poderosos da hora.


Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras nesta coluna.
@ - magnoli@ajato.com.br


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