São Paulo, segunda-feira, 21 de julho de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O fundo soberano

FABIO GIAMBIAGI


O melhor é não criar o fundo e simplesmente ter por algum tempo um superávit primário maior que o dos últimos anos

O GOVERNO pretende criar um fundo soberano, a ser constituído nos próximos anos, em função da bonança da arrecadação, inicialmente com parcela do superávit primário superior à meta de 3,8% do PIB e, no futuro, com os recursos extraordinários a serem colhidos quando começar a exploração das novas reservas de petróleo. O propósito deste artigo é questionar a conveniência da criação desse fundo.
Antes de nos aprofundarmos na matéria, é importante explicar ao leitor a composição da dívida líquida do setor público. Como o nome sugere, ela desconta da dívida bruta os ativos financeiros em poder do setor público consolidado. Há dois ativos que se destacam: i) as reservas internacionais em poder do Banco Central; e ii) o estoque do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador).
As primeiras são expressivas (mais de US$ 200 bilhões), enquanto o FAT é da ordem de 5% do PIB. Ambos os ativos rendem menos que o custo do endividamento fiscal bruto, que, simplificadamente, pode ser associado à taxa Selic (que, em pouco tempo, estará em 14%). As reservas, aplicadas no exterior, rendem em torno de 4%, e o FAT rende ao governo a remuneração da TJLP, ou pouco mais de 6%.
Embora tais aplicações gerem um custo fiscal, são ativos consolidados que formam parte tradicionalmente da estrutura do setor público -no caso das reservas, porque são uma espécie de "seguro" contra crises externas e, no do FAT, porque é parte do "funding" do BNDES, um órgão executor importante das políticas públicas.
A criação de um novo fundo implicaria criar um novo ativo, que provavelmente teria também uma remuneração inferior ao custo da dívida. Vamos adotar algumas hipóteses básicas, supondo que o fundo acumule 0,5% do PIB por ano durante quatro anos e 1% do PIB por ano nos seis anos seguintes. Desprezando a sua capitalização, em dez anos ele teria ativos de 8% do PIB. Se daqui a dez anos a taxa de juros real for de 5% e o fundo render 2% ao ano -o que, para quem conhece a história brasileira, parece ser uma hipótese razoável, diante das possíveis aplicações a serem feitas com os recursos-, ele geraria um custo fiscal aproximado de 3% sobre 8% do PIB, ou seja, da ordem de 0,25% do PIB por ano. Quando a despesa de juros é de 6% do PIB, pode não parecer muito, mas, no Brasil futuro em que se espera que a despesa de juros daqui a dez anos seja de 4% do PIB ou menos, seria um ônus não desprezível.
O ponto central da argumentação é que em um país como o nosso, com dívida pública e taxas de juros elevadas, com uma dívida mobiliária federal que era de 12% do PIB no começo do Plano Real, em 1994, de 34% do PIB no final do governo FHC, em 2002, e que atinge 42% do PIB atualmente, não há rigorosamente nada que seja mais interessante para as gerações futuras do que acabar com essa "herança maldita" (ela, sim!) da época do elevado endividamento público do Brasil do passado.
Adotar outro procedimento em uma situação de bonança da receita (seja ela associada à competência da Receita Federal ou à contribuição da mãe natureza, que decidiu favorecer o país com a descoberta de novas reservas de petróleo) equivale, por analogia com a situação de uma família, a que um pai de família pendurado no cheque especial ganhe R$ 10.000 no bingo e, em vez de quitar as suas dívidas mais onerosas, abra uma caderneta de poupança para receber os "polpudos" rendimentos que a poupança paga hoje em dia. A alternativa de gastar o dinheiro é, obviamente, ainda pior, por mais nobre que seja a utilização dos recursos.
Enquanto o país tiver uma dívida elevada, a melhor forma de o Brasil aproveitar a bonança vindoura é ter superávits e pagar a dívida mobiliária, que continua sendo o calcanhar-de-aquiles da política fiscal.
Criar um fundo soberano pode ser uma idéia interessante no dia em que a dívida desaparecer ou for pequena.
Enquanto esse dia não chega, a melhor política, aproveitando o auge dos novos recursos gerados pelo petróleo, é ter como alvo, na próxima década, uma meta de superávit nominal das contas públicas de algo como 1% do PIB, a exemplo de uma velha prática implementada pelo Chile.
Com isso, a despesa de juros cairia rapidamente e, quando o país for superavitário, menores juros criarão um espaço para, nesse caso, sim, gastar mais em outras áreas -por exemplo, saúde e educação. Para viabilizar isso, o melhor é não inovar, não criar o fundo e simplesmente ter durante algum tempo um superávit primário maior que o dos últimos anos.


FABIO GIAMBIAGI , 46, mestre em economia pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), é economista do BNDES e autor do livro "Finanças Públicas: Teoria e Prática no Brasil", entre outras obras.

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