São Paulo, Terça-feira, 21 de Setembro de 1999
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A arte e o mal

ARIANO SUASSUNA

No século 20, por influência de Nietzsche, toda uma área do pensamento ocidental passou a colocar o comportamento humano "para além do bem e do mal". E, no que se refere aos problemas estéticos, parece que foi principalmente por influência de Oscar Wilde e André Gide que se passou a considerar a arte como superior e alheia a qualquer determinação de ordem moral.
As pessoas menos avisadas sobre os problemas filosóficos não costumam examinar as coisas até o fim e tirar todas as consequências de princípios que sustentam levianamente e sem maior exame. Permita-se que eu dê, aqui, um depoimento do professor de estética que fui por mais de 30 anos. Quase sempre, quando, em minhas aulas, eu ia tratar das relações da arte com a moral, fazia, inicialmente, um inquérito entre os estudantes, e o resultado indicava quase sempre que, na opinião deles, a arte nada tem a ver com a moral (o que, aliás, é verdade, mas só no momento da criação da obra).
Aí, eu colocava de novo o problema, dessa vez tirando as consequências do princípio que os estudantes tinham afirmado, e todos recuavam da posição assumida. O que eu fazia, primeiro, era retirar o problema das áreas mais polêmicas e capazes de perturbar o julgamento. Sabia que, ao serem colocadas diante da pergunta sobre as possíveis relações da arte com a moral, as pessoas menos avisadas costumam identificar esse problema com o da presença, nas obras de arte, de cenas "eróticas" ou "obscenas".
Então, para retirar a reflexão dos estudantes de um campo onde a passionalidade perturba tudo, eu costumava indagar se meus alunos considerariam legítima, do ponto de vista moral, uma obra de arte que pregasse, por exemplo, o assassinato de crianças. Perguntava se achavam justo que se entregasse a adolescentes uma obra literária, escrita por um grande artista de personalidade doentia e criminosa, e que difundisse, entre seus jovens leitores, a idéia de que o prazer sexual é muito mais intenso quando obtido por meio da violação de crianças que depois são estranguladas.
Sempre que colocava o problema de tal modo, eu via os estudantes recuarem, horrorizados, do amoralismo que tinham afirmado de início. E aí, então, eu tinha ambiente para dar a minha aula, sabendo que todos eles tinham chegado a um estado de espírito do qual tinham sido banidas a superficialidade e a paixão.


Ariano Suassuna escreve às terças-feiras nesta coluna.


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