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A arte e o mal
ARIANO SUASSUNA
No século 20, por influência de
Nietzsche, toda uma área do pensamento ocidental passou a colocar o
comportamento humano "para além
do bem e do mal". E, no que se refere
aos problemas estéticos, parece que
foi principalmente por influência de
Oscar Wilde e André Gide que se passou a considerar a arte como superior
e alheia a qualquer determinação de
ordem moral.
As pessoas menos avisadas sobre os
problemas filosóficos não costumam
examinar as coisas até o fim e tirar todas as consequências de princípios
que sustentam levianamente e sem
maior exame. Permita-se que eu dê,
aqui, um depoimento do professor de
estética que fui por mais de 30 anos.
Quase sempre, quando, em minhas
aulas, eu ia tratar das relações da arte
com a moral, fazia, inicialmente, um
inquérito entre os estudantes, e o resultado indicava quase sempre que, na
opinião deles, a arte nada tem a ver
com a moral (o que, aliás, é verdade,
mas só no momento da criação da
obra).
Aí, eu colocava de novo o problema,
dessa vez tirando as consequências do
princípio que os estudantes tinham
afirmado, e todos recuavam da posição assumida. O que eu fazia, primeiro, era retirar o problema das áreas
mais polêmicas e capazes de perturbar
o julgamento. Sabia que, ao serem colocadas diante da pergunta sobre as
possíveis relações da arte com a moral,
as pessoas menos avisadas costumam
identificar esse problema com o da
presença, nas obras de arte, de cenas
"eróticas" ou "obscenas".
Então, para retirar a reflexão dos estudantes de um campo onde a passionalidade perturba tudo, eu costumava
indagar se meus alunos considerariam legítima, do ponto de vista moral, uma obra de arte que pregasse, por
exemplo, o assassinato de crianças.
Perguntava se achavam justo que se
entregasse a adolescentes uma obra literária, escrita por um grande artista
de personalidade doentia e criminosa,
e que difundisse, entre seus jovens leitores, a idéia de que o prazer sexual é
muito mais intenso quando obtido
por meio da violação de crianças que
depois são estranguladas.
Sempre que colocava o problema de
tal modo, eu via os estudantes recuarem, horrorizados, do amoralismo
que tinham afirmado de início. E aí,
então, eu tinha ambiente para dar a
minha aula, sabendo que todos eles tinham chegado a um estado de espírito
do qual tinham sido banidas a superficialidade e a paixão.
Ariano Suassuna escreve às terças-feiras nesta coluna.
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