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São Paulo, domingo, 21 de setembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Clonagem humana

KOICHIRO MATSUURA


Os clones humanos não seriam monstros, mas poderiam rejeitar o projeto normativo que comandou seu nascimento

Dolly está morta. O primeiro mamífero clonado a partir de uma célula adulta foi sacrificado em fevereiro deste ano. Isso aconteceu pouco depois de o nascimento de um clone humano ter sido anunciado ao público, embora a notícia não tenha sido confirmada. A morte de Dolly teve menos repercussão que seu nascimento. Mas está claro que ela levanta a questão dos efeitos de longo prazo da clonagem sobre o próprio organismo clonado. E, de certo modo, garante aos humanos algum adiamento ou prorrogação.
Os códigos que regem as pesquisas médicas governamentais proíbem a realização, com humanos, de experimentos de processos cuja segurança e eficácia ainda não tenham sido comprovadas por meio de testes em animais. Mas o que vai acontecer quando essa barreira técnica for derrubada e o argumento da precaução por motivo de saúde deixar de ser válido? Antes mesmo de se concretizar, a perspectiva da clonagem humana já nos confronta com um desafio ético, cultural e político de grandes proporções.
A clonagem humana, hoje, diz respeito a dois procedimentos técnicos que diferem tanto no tocante a seus objetivos quanto na prática. O objetivo da clonagem terapêutica não é chegar ao nascimento de um indivíduo, mas retirar células-tronco de um embrião criado pela substituição de células nucleares. O uso dessas células-tronco poderia transformar a medicina regenerativa. Por que hesitar, então?
O que está em jogo aqui é o status do embrião: é legítimo criar embriões cujo desenvolvimento jamais será levado a termo? E quem vai providenciar os incontáveis óvulos necessários para essas manipulações? Isso não poderá levar a uma nova forma de objetificação e utilização comercial do corpo feminino, especialmente o das mulheres mais pobres? Essas perguntas só podem ser respondidas por meio da criação de parâmetros legais rígidos para as pesquisas com embriões humanos, e, para chegar a isso, são necessários novos debates.
O objetivo da clonagem reprodutiva, por outro lado, é chegar ao nascimento de uma criança que seria a réplica cromossômica de outro indivíduo. Mas clonar um organismo não é o mesmo que copiar uma pessoa. Existem evidências disso nos mecanismos da reprodução sexual natural: os gêmeos verdadeiros são indivíduos sem dúvida nenhuma diferentes, mas, mesmo assim, são mais semelhantes entre si do que seriam dois clones. Aqueles que associam a clonagem à realização dos mitos seculares da imortalidade ou ressurreição, ou ainda a uma busca impossível por produzir cópias deles mesmos ou de outros, utilizam representações da genética que são equivocadas e perigosas.
Os clones humanos certamente não seriam monstros, mas poderiam rejeitar o projeto normativo que comandou seu nascimento. Mas precisamos investigar mais a fundo, examinando as motivações por trás de tal projeto e as visões da raça e da sociedade humanas subjacentes a ele. Esse tipo de manipulação consideraria os clones como portadores de um genoma específico, escolhido por suas propriedades específicas. Não é difícil imaginar as consequências psicológicas e sociais desastrosas que poderiam advir desse tipo de eugenia.
A natureza fornece a cada indivíduo uma identidade genética única e singular. Abrir mão dessa riqueza natural pode, algum dia, nos levar a uma divisão genética artificial entre humanos dotados de genomas originais e humanos cujos genomas são clonados. Será que a humanidade já não sofre tipos de discriminação que cheguem?
Na melhor das hipóteses, a idéia da clonagem humana se baseia numa série de fantasias e concepções equivocadas; na pior delas, no desejo de utilizar a genética para finalidades decididamente questionáveis, quer sejam comerciais, ideológicas ou práticas. A proibição da clonagem humana reprodutiva, recomendada primeiramente na Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos, ratificada pela Assembléia Geral da ONU em 1998, é, portanto, irrevogável.
A Unesco foi a primeira organização intergovernamental a propor um programa consistente para tratar da bioética, com a criação do Comitê Internacional de Bioética, dez anos atrás, seguida pela formação do Comitê Intergovernamental de Bioética. Atualmente estamos trabalhando numa declaração sobre dados genéticos, já que a utilização de tais dados, se não for corretamente administrada, pode dar lugar a instâncias assustadoras de negação dos direitos humanos. Também nos foi pedido que formulemos uma ferramenta de trabalho universal com a bioética. Esse pedido confirma que a Unesco pode ser o fórum apropriado para um acordo quanto a um conjunto de critérios éticos que possa servir de ponto de referência comum.
A ética da ciência e da tecnologia é uma das prioridades da Unesco, que está intensificando sua função de observadora e sua atividade de previsão. Um resultado disso foi a escolha do tema básico da sessão das Conversas do Século 21 no início deste mês, em Paris: a difícil e urgente pergunta "deve a clonagem humana ser proibida?".
O homem não é um mamífero qualquer. Os animais podem ser reproduzidos por meio da clonagem. Mas os humanos são moldados pela educação, a ciência e a cultura, não pela clonagem.
Koichiro Matsuura, 66, economista e diplomata japonês, é o diretor-geral da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura).


Tradução de Clara Allain


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