São Paulo, quinta-feira, 21 de outubro de 2004 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES Recaídas autoritárias
PAULO SÉRGIO PINHEIRO
A antiga dissidência política e armada já fez há muito tempo a sua autocrítica sobre a violência armada. E várias de suas antigas lideranças fazem hoje parte do processo político estritamente legal. Em contrapartida, como demonstra a lamentável nota, tem-se a impressão de que ainda há setores recalcitrantes dentro do Exército que não revisaram e não aprenderam nada. Não se deram conta de que já existe uma democracia no Brasil e se esquecem de que estão submetidos a uma cadeia de comando. Deveriam ser logo identificados, sumariamente responsabilizados e julgados segundo a legislação militar vigente para os casos de insubordinação e desobediência ao governo constituído. Creio que, diante desses acessos de "revival" autoritário, talvez seja o momento de começar a lembrar que a Lei de Anistia no Brasil, de 1979, em nenhum momento menciona a tortura realizada pelos agentes do Estado. E, como lembrava nessas páginas Fábio Konder Comparato, em 1992 o Brasil ratificou a Convenção Americana dos Direitos Humanos, de 1969 -o que os governos militares, por boas razões, nunca fizeram. Nessa convenção, assim como na Convenção Internacional contra a Tortura, os crimes de tortura são imprescritíveis e a impunidade dos agentes do Estado torturadores e responsáveis por execuções sumárias pode a qualquer momento ser colocada em pauta. Quanto a isso, a jurisprudência do sistema interamericano de direitos humanos é claríssima: na sentença sobre o caso Barrios Altos, referente às mortes perpetradas por um esquadrão da morte ligado ao Exército peruano, a Corte Interamericana de Direitos Humanos destaca que as leis de anistia adotadas no Peru violaram os direitos à proteção judicial e impediram a investigação dos crimes denunciados, em desacordo com o estabelecido pela convenção americana. Igualmente, no caso do assassinato do bispo Oscar Romero, em El Salvador, as leis de anistia foram reconhecidas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos um grave obstáculo à realização da justiça. Em todos os casos semelhantes, tanto a corte como a comissão reconhecem a imprescritibilidade de crimes como a tortura, de acordo as normas internacionais -aliás, todas elas já ratificadas pelo Estado brasileiro. A conclusão diante da revelação dos fatos e da nota do Exército é que a negação da memória e a impunidade não são a melhor estratégia para lidar com os crimes cometidos por agentes do Estado durante os 21 anos de regime autoritário. Talvez já esteja na hora de as organizações da sociedade civil abrirem o debate sobre as formas de aplicar integralmente no Brasil a convenção americana e os demais tratados internacionais. Caso contrário, continuaremos correndo o risco desses chiliques autoritários. Paulo Sérgio Pinheiro, 60, pesquisador associado do Núcleo de Estudos da Violência da USP, é membro da Subcomissão de Promoção e Proteção dos Direitos Humanos da ONU e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da OEA. Foi secretário de Estado dos Direitos Humanos (governo Fernando Henrique). Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Gonzalo Vecina Neto: A verdade sobre o SUS em São Paulo Índice |
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