São Paulo, quinta-feira, 21 de outubro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Recaídas autoritárias

PAULO SÉRGIO PINHEIRO

As revoltantes fotos do jornalista Vladimir Herzog, torturado e assassinado nas dependências do DOI-Codi em São Paulo, demonstram de maneira patente que os órgãos paralelos de repressão documentaram minuciosamente os crimes que cometeram. É escandaloso que, 19 anos depois do final do ditadura militar e após 15 anos de governo constitucional, o Estado brasileiro não tenha ainda devassado os arquivos do arquipélago dos DOI-Codi e da Operação Bandeirantes.
Fica evidente, pela revelação dessas fotos e pela ferrenha resistência do Exército em abrir a documentação sobre a guerrilha do Araguaia, que "os registros operacionais e da atividade de inteligência" existem. Não fora o patriotismo e a enorme coragem cívica do cardeal emérito de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, e do saudoso pastor Jaime Wright, com o "Brasil Nunca Mais" e notáveis trabalhos como o livro do hoje ministro Nilmário Miranda e do jornalista Carlos Tibúrcio, "Os Filhos desse Solo", além da obra de Elio Gaspari "As Ilusões Armadas", a desmemória sobre aqueles tempos seria quase total.
A nota publicada pelo Centro de Comunicação Social do Exército é uma peça de fantasia política que não resiste a nenhuma análise rigorosa. Lendo aquela história da carochinha e olhando aquelas fotos, caminhamos para trás na máquina no tempo. A versão de "legítima resposta à violência" não se sustenta: por causa das ações violentas de uma minoria de organizações armadas, a ditadura submeteu todos que dissentiam e se opunham ao regime militar a um "terrorismo de Estado" -para usar a expressão cunhada desde 1964 por Alceu Amoroso Lima. Não resta dúvida de que o Estado brasileiro foi responsável por essas mortes e esses crimes, como inclusive reconheceu, através de lei, o governo Fernando Henrique Cardoso, ao estabelecer a comissão sobre os mortos e desaparecidos e ao indenizar os familiares desses assassinados.


Tem-se a impressão de que ainda há setores recalcitrantes dentro do Exército que não aprenderam nada


A antiga dissidência política e armada já fez há muito tempo a sua autocrítica sobre a violência armada. E várias de suas antigas lideranças fazem hoje parte do processo político estritamente legal. Em contrapartida, como demonstra a lamentável nota, tem-se a impressão de que ainda há setores recalcitrantes dentro do Exército que não revisaram e não aprenderam nada. Não se deram conta de que já existe uma democracia no Brasil e se esquecem de que estão submetidos a uma cadeia de comando. Deveriam ser logo identificados, sumariamente responsabilizados e julgados segundo a legislação militar vigente para os casos de insubordinação e desobediência ao governo constituído.
Creio que, diante desses acessos de "revival" autoritário, talvez seja o momento de começar a lembrar que a Lei de Anistia no Brasil, de 1979, em nenhum momento menciona a tortura realizada pelos agentes do Estado. E, como lembrava nessas páginas Fábio Konder Comparato, em 1992 o Brasil ratificou a Convenção Americana dos Direitos Humanos, de 1969 -o que os governos militares, por boas razões, nunca fizeram. Nessa convenção, assim como na Convenção Internacional contra a Tortura, os crimes de tortura são imprescritíveis e a impunidade dos agentes do Estado torturadores e responsáveis por execuções sumárias pode a qualquer momento ser colocada em pauta.
Quanto a isso, a jurisprudência do sistema interamericano de direitos humanos é claríssima: na sentença sobre o caso Barrios Altos, referente às mortes perpetradas por um esquadrão da morte ligado ao Exército peruano, a Corte Interamericana de Direitos Humanos destaca que as leis de anistia adotadas no Peru violaram os direitos à proteção judicial e impediram a investigação dos crimes denunciados, em desacordo com o estabelecido pela convenção americana. Igualmente, no caso do assassinato do bispo Oscar Romero, em El Salvador, as leis de anistia foram reconhecidas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos um grave obstáculo à realização da justiça. Em todos os casos semelhantes, tanto a corte como a comissão reconhecem a imprescritibilidade de crimes como a tortura, de acordo as normas internacionais -aliás, todas elas já ratificadas pelo Estado brasileiro.
A conclusão diante da revelação dos fatos e da nota do Exército é que a negação da memória e a impunidade não são a melhor estratégia para lidar com os crimes cometidos por agentes do Estado durante os 21 anos de regime autoritário. Talvez já esteja na hora de as organizações da sociedade civil abrirem o debate sobre as formas de aplicar integralmente no Brasil a convenção americana e os demais tratados internacionais. Caso contrário, continuaremos correndo o risco desses chiliques autoritários.

Paulo Sérgio Pinheiro, 60, pesquisador associado do Núcleo de Estudos da Violência da USP, é membro da Subcomissão de Promoção e Proteção dos Direitos Humanos da ONU e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da OEA. Foi secretário de Estado dos Direitos Humanos (governo Fernando Henrique).


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