São Paulo, quinta-feira, 22 de janeiro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Sonhos de Mumbai

ZANDER NAVARRO

Tradição ou mudança? Ao longo da história, a antinomia animou várias respostas, do nascimento das "ciências da sociedade" aos mais diversos conflitos. Mumbai, cidade indiana de 18 milhões de habitantes, a segunda maior do planeta, recebeu o Fórum Social Mundial, e tal sede não poderia ser mais emblemática, pois as incertezas sugeridas por essa polaridade não apenas caracterizam a cidade, mas marcam o próprio Fórum Social.
A Índia provavelmente é um dos países que mais evidenciam os dilemas da globalização. Notável poder emergente, sua economia floresce, comanda tecnologias sofisticadas e observa atualmente o rápido crescimento de empregos transferidos dos países mais ricos, especialmente na área de serviços. Mas a pobreza mais aguda, em Mumbai, é onipresente e dilacerante: metade de sua população vive em favelas e, espantosamente, pouco mais de 1 milhão de pessoas dormem ao relento.
O Fórum Social também é marcado por tradição e arcaísmo, mas anseia a mudança global. Suas incertezas refletem o imobilismo gerado por essa oposição. Nesse sentido, a quarta edição do evento demonstrou evidentes sinais de esgotamento, não obstante ter sido presenciado por mais de 100 mil pessoas, segundo os organizadores.


Sem adesão relevante nos países ricos, dificilmente um outro mundo será algum dia possível


O fórum tem origem, especialmente, em quatro processos sociais e econômicos dos anos 90: a orfandade política da esquerda, depois de 1989, e a busca de um novo espaço de manifestação; as evidências de ampliação da desigualdade no mundo; a revolução tecnológica, particularmente no campo da comunicação, pois a internet permitiu a formação de redes e articulações entre atores em rapidez antes sequer imaginada; e, finalmente, nos anos mais recentes, o sentimento de "desproteção" que passou a predominar em quase todo o planeta, em face do rebaixamento do poder do Estado de regular as lutas sociais e a arbitragem da distribuição da riqueza. A convergência desses processos abriu caminho para os movimentos de protestos dos anos recentes e sua oposição à globalização e ao capitalismo.
Seus resultados são inegáveis. Criou um promissor lócus de interação do "campo progressista", revigorando uma identidade política ameaçada, essencial para a reemergência da ação coletiva motivada pelo ideário tradicional de esquerda. Além disso, conseguiu reduzir a dominação aplastante da hegemonia neoliberal, que vigorou em quase toda a década passada, bloqueando diversas iniciativas conservadoras e, de certa forma, se constituindo em um novo pólo contraposto à direita política.
Quais seriam então os seus impasses? Primeiramente, o que para muitos é a sua manifestação mais positiva e democrática, isto é, a diversidade de manifestações sociais e políticas -que permite assistir seminários intitulados "Desaprendendo", "Ética dos engenheiros", "Uma dança em um corpo diferente" ou, até mesmo, "A vida depois do capitalismo". Não obstante ter criado extraordinário palco de visibilidade em torno dos problemas sociais, esse é um dos seus mais fortes problemas, pois não sendo centrado em focos de ação viáveis, transformou-se primordialmente em um "espaço de debates", destinado tão somente à denúncia.
O outro impasse toma as ruas e salões do fórum desde a sua primeira edição: há, claramente, um conflito de gerações. Uma geração mais velha, ainda movida por noções de mudança derivadas dos debates ideológicos dos anos 70 e parte da década seguinte, e outra mais jovem, desinformada dos debates políticos polarizados do passado. Para essa, a ação política ou é mais próxima de um mal disfarçado altruísmo de classes médias dos países ricos ou, inversamente, adere ao radicalismo mais infantil, inclusive porque sem nenhum lustro analítico. Para esses últimos, aliás, Mumbai produziu a novidade da primeira divisão do movimento, pois foi organizado simultaneamente o "Fórum de Resistência", para agregar especialmente a extrema-esquerda, insatisfeita com um suposto reformismo do evento oficial.
O terceiro fator limitante se relaciona às suas atuais impossibilidades políticas. Não se articulando com partidos políticos (exceto no Brasil) e outras forças sociais detentoras de poder real, o fórum corre o risco de se manter apenas como a grande festa da esquerda mundial, assim mantendo-se como quimérica a noção de uma sociedade civil global com poder de transformação.
Finalmente, a barreira mais grave para o futuro dessa iniciativa é a inexistência de um programa de ação e de oferta concreta de alternativas -ou a impossibilidade de materializar iniciativas reais e de maior abrangência. Ao manter uma retórica antiamericana como seu lema principal e uma fetichização das experiências dos países do "Sul", o fórum move-se em círculos. Por que não aproveitar, por exemplo, as chamadas "metas do milênio", instituídas pela ONU em 2000, como a sua principal campanha de ação? Ou então, em relação à ampliação do peso político, considerar que nenhuma mudança mais substantiva ocorrerá se não contar com o apoio de setores sociais significativos dos países do "Norte"? Sem adesão relevante nos países ricos, dificilmente um outro mundo será algum dia possível. Talvez Porto Alegre, no próximo ano, consiga avançar sobre tais impasses.

Zander Navarro, 51, acompanhou o Fórum Social Mundial deste ano em Mumbai, na Índia. É professor visitante da Universidade de Sussex (Inglaterra) e professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da UFRGS.


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