São Paulo, terça-feira, 22 de fevereiro de 2000


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Tinhorão e o quinteto

ARIANO SUASSUNA

Quando, na década de 70, fundei o Quinteto Armorial, meu objetivo maior era dar a compositores e intérpretes como Antônio Madureira e Antônio Nóbrega a oportunidade de criarem uma música brasileira que nada tivesse a ver com a música americana massificada que naquela época já começara a nos corromper e descaracterizar. Eu via, mesmo nos Estados Unidos, os jovens brancos americanos tirarem toda a força, toda a garra, à música negra, como acontecera no caso do jazz.
Entenda-se: pessoalmente, gosto muito do piano jazzístico de um Jelly Roll Morton. Mas, nascido num país de raízes musicais tão poderosas como o Brasil, não via nem vejo necessidade de nossos compositores imitarem nem mesmo a verdadeira música negra americana, a única que presta lá.
Mas a imitação seria ainda pior no caso do rock, música na qual os jovens americanos brancos, liderados por um imbecil como Elvis Presley, falsificavam uma raiz popular negra, enfraquecendo sua força original e achatando-a de acordo com o gosto médio e o mau gosto dos meios de comunicação de massa.
Em contraste com esse mau gosto dominante é que se exerce a crítica de José Ramos Tinhorão, o que ficou demonstrado em seu recente artigo na revista "Veja" e, na década de 70, noutra matéria que ele publicou quando da aparição do primeiro disco do Quinteto Armorial. Lembro que, na época, nem Antônio Madureira nem Antônio Nóbrega eram os artistas respeitados e admirados que são hoje. Eram rapazes de 20 anos; e José Ramos Tinhorão teve sensibilidade para descobrir e coragem para afirmar a importância deles para o presente e o futuro da música brasileira.
Tinhorão publicou seu artigo em 10 de dezembro de 1974. Começa-o perguntando: "Quantas vezes, na história de qualquer país do mundo, se conseguiu fundir em uma dúzia de peças musicais o regional no universal e o popular no erudito? A julgar pela trajetória da cultura ocidental (...) esses momentos (...) não foram muitos. Por isso mesmo, o aparecimento de um desses raros exemplos no Brasil (...) só pode ser saudado como milagre. O milagre, no caso, é representado pelas músicas do LP Quinteto Armorial -Do Romance do Galope Nordestino (...). Ao som da viola sertaneja do compositor Antônio Madureira, da rabeca de Antônio Nóbrega, do violão de Edilson Eulálio, do pífano e flauta de Egildo Vieira e do marimbau de Fernando Torres, composições como "Revoada" e "Ponteio Acutilado" transportam numa ponte de quatro séculos a Renascença para o Nordeste, para repetir a experiência fantástica da fusão da plangente monodia do marimbau dos cegos com a polifonia do violão, esse descendente do alaúde, enquanto a viola soa cortante e metálica como um clavicórdio". E conclui: "A revelação musical do Quinteto Armorial vem mostrar que, das profundezas da criação popular, também se pode tirar uma cultura autenticamente nacional. Quem ouvir dirá se não estamos com a razão. Mas, pelo amor de Deus, não deixem de ouvir".
Por tudo isso, mando, daqui, meu abraço a José Ramos Tinhorão para dizer-lhe que, enquanto soarem no Brasil vozes como a sua, nosso povo pode ter esperança.


Ariano Suassuna escreve às terças-feiras nesta coluna.


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