São Paulo, sexta-feira, 22 de março de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Acertando os ponteiros

RICARDO SEITENFUS

A Suíça decidiu ingressar na ONU (Organização das Nações Unidas), virando assim mais uma página de sua longa história. Raramente um só país pôde dar mostra de tantos princípios louváveis de organização política e social. Finalmente a maioria do povo suíço decidiu compartilhar conosco sua extraordinária experiência, graças aos votos de uma dupla, embora curta, maioria (54,6% dos votantes e 12 dos 23 Cantões), que pode contribuir para que o cenário internacional não permaneça sendo marcado pelos rosários de injustiças, guerras e sofrimentos que ora presenciamos.
Território desprovido de riquezas naturais, do qual grande parte está encravada nos Alpes, habitado por uma população que perfaz um mosaico cultural e linguístico; corredor de passagem obrigatório entre a Europa setentrional e meridional; cercada por potências militares agressivas; a Suíça encontrou na neutralidade política o único caminho capaz de assegurar sua unidade territorial e a independência nacional.
Desde a Constituição de 1848, ainda em vigor, a Suíça impede o emprego de suas Forças Armadas no exterior, excetuando-se as ações de legítima defesa. As guerras européias do século 19 e as guerras mundiais do século seguinte preservaram a Confederação Helvética, que pôde, em melhores condições do que os beligerantes, desfrutar de um singular desenvolvimento econômico e social.
A neutralidade permitiu igualmente que a Suíça se transformasse no mediador de várias crises internacionais. Espaço onde dialogam opositores estrangeiros, árbitro de querelas fronteiriças -como a que opôs o Brasil à França na questão da Guiana, em 1900-, a Suíça construiu ao longo de sua história uma respeitabilidade no difícil campo da diplomacia e das relações internacionais.


O isolamento suíço era um desserviço à humanidade. Estima-se que ela fará bem à atormentada ONU


Assim, a Suíça foi o berço do direito humanitário, com o surgimento, em 1863, sob a inspiração de Henry Dunant, do movimento internacional da Cruz e do Crescente Vermelhos. Por meio das Convenções de Genebra de 1949 e de seus Protocolos Adicionais de 1977, tenta-se humanizar a guerra e proteger os civis. Limitada e sempre passível de crítica, como ocorreu no episódio do genocídio nazista, a ação humanitária depende da boa vontade dos beligerantes. Todavia constitui, em situações de grave risco, o solitário instrumento de contenção das atrocidades que acompanham os conflitos.
Finalmente, o país beneficia-se de sua neutralidade para acolher várias organizações internacionais que injetam, anualmente, mais de US$ 1,5 bilhão em sua economia. Paradoxalmente, abrigando a sede européia da ONU, a Confederação Helvética recusava-se a participar dessa organização. No entanto a Suíça poderia ser considerada um não-membro perfeito, pois participava financeiramente das atividades da organização sem dispor da contrapartida representada pelo direito de voto. Essa hipoteca surrealista foi resolvida com a recente decisão.
Contrariamente à consulta de 1986, quando três quartas partes dos eleitores se tinham pronunciado contrárias à adesão, a decisão de 2002 significa a derrota dos "onucéticos" e a ruptura com uma Suíça centrada sobre seus microproblemas, egoísta e camponesa, cristalizada pelo espírito da Heïdiland.
A mudança radical, em menos de uma geração, decorre, por um lado, da evolução de mentalidades, impulsionada por uma juventude aberta ao mundo, e do "melting pot" provocado por migrações, educação e turismo. Por outro lado, o estreitamento dos vínculos econômicos com o exterior traz a certeza de que muito da riqueza do país provém de fora, pela via do comércio, das finanças, das importantes indústrias químicas, de máquinas e de alimentos. Não é outra a razão do forte engajamento dos meios empresariais na vitoriosa campanha.
Marcada por uma organização econômica em que se encontram as menores taxas de desemprego da Europa, com uma coesão social de fazer inveja, com uma democracia direta e participativa exemplificada pelo recente referendo, respeitosa dos direitos das minorias, em que se manifestam os princípios de tolerância e de aceitação das diferenças, o isolamento suíço era um desserviço à humanidade. Estima-se que ela fará bem à atormentada ONU.
Tal ingresso constitui um novo ponto de partida para normalizar as relações suíças com a Europa. Após o doloroso reconhecimento público do papel do Estado suíço frente o genocídio nazista e o início de uma importante luta contra a lavagem de dinheiro -que podemos, inclusive, avaliar do Brasil-, chegará o momento em que a Suíça deverá, igualmente, integrar-se à União Européia.
Renasce para o mundo uma Suíça que, esperamos, será no novo milênio um exemplo de tolerância, de multiculturalismo, de originalidade e de cidadania; valores dos quais tanto precisamos.


Ricardo Antônio Silva Seitenfus, 53, doutor em Relações Internacionais pelo Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais de Genebra, é professor titular da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Santa Maria (RS) e autor, entre outros, de "Textos Fundamentais do Direito das Relações Internacionais" (Livraria do Advogado, Porto Alegre).



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