São Paulo, quarta-feira, 22 de março de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O outro debate da TV digital

STEVE SOLOT

O recente debate nacional sobre o melhor modelo de TV digital para o país foi um dos mais intensos já ocorridos no Brasil sobre temas de comunicação de massa.
No entanto, há um aspecto subjacente que é absolutamente fundamental e que nem sequer foi mencionado pela mídia. Trata-se de uma questão que oferece um perigo real para as bases futuras da TV digital aberta no Brasil: a proteção do conteúdo a ser transmitido por esse novo meio de comunicação de massa.


Trata-se de questão que oferece perigo real para as bases futuras da TV digital aberta no Brasil: a proteção do conteúdo


O problema surge porque, com o advento da transmissão digital, a radiodifusão livre, aberta e gratuita não será viabilizada a não ser que a transição do sistema analógico para o sistema digital seja acompanhada por medidas tecnológicas e legais que impeçam a redistribuição não autorizada do conteúdo pela internet.
Podemos exemplificar o problema com a seguinte seqüência lógica: 1) uma emissora local obtém os direitos e transmite sua grade de programação ao mercado local; 2) a transmissão digital não codificada é recebida pelos telespectadores-alvo; 3) por não estar protegido, o conteúdo pode facilmente ser redistribuído na internet por meio do compartilhamento de arquivos "peer-to-peer"; 4) o conteúdo desprotegido pode ser acessado por um número enorme de pessoas em todo o mundo; 5) com os avanços do poder de processamento, da capacidade de armazenamento e acesso em banda larga... qualquer pessoa poderia ser uma emissora!
Mas, antes que o cenário acima se transforme em realidade, entrariam em cena as relações comerciais entre os setores de distribuição e as emissoras.
O risco de redistribuição via internet provavelmente levaria os distribuidores a preferir o licenciamento de seus produtos para as plataformas codificadas mais seguras, como, por exemplo, a TV a cabo e via satélite. Esse cenário tenderia a inviabilizar o modelo de negócios baseado na venda de publicidade local -modelo esse convencionalmente utilizado pelas emissoras- e, mais importante ainda, privaria o telespectador do acesso gratuito ao conteúdo da TV aberta.
O perigo é real para todas as emissoras e fornecedores de conteúdo, independentemente da nacionalidade.
Produtores de conteúdo audiovisual nos EUA relutarão em licenciar programas e filmes às redes de televisão brasileiras que não ofereçam proteção eficiente ao conteúdo transmitido, e produtores brasileiros, independentes ou não, temerão a desvalorização de seus produtos pela redistribuição indiscriminada na internet, o que impossibilitaria a venda de novelas e filmes brasileiros em mercados externos nos quais já estariam disponíveis na internet.
O que pode ser feito? Há dois métodos básicos de proteção contra a redistribuição não autorizada de conteúdo de TV digital:
1) codificar o sinal na fonte (medida utilizada no Japão);
2) inserir uma "marca" no sinal transmitido, sendo necessário o reconhecimento dessa "marca" pelo receptador do sinal (opção já escolhida pelos EUA e em estudo na Europa).
A primeira alternativa, em uso no Japão desde 2004, garante a codificação do conteúdo antes da sua transmissão. Esse sistema também é usado pela transmissão digital por satélite. A decodificação é feita pelo "set-top box" convencional, não havendo custo para o consumidor.
A segunda alternativa não requer a codificação da transmissão digital, mas a emissora insere no conteúdo uma "marca" com as informações do detentor dos direitos autorais. O aparelho receptador do telespectador terá que "procurar" essas informações, de modo a impedir a redistribuição do conteúdo. Caso esse sistema seja adotado no Brasil, o governo teria de tornar obrigatória a sua adoção, o que teria um custo irrisório para o consumidor. Nos EUA, essa forma de proteção do conteúdo digital é chamada de "broadcast flag".
O risco da distribuição não autorizada existe em qualquer sistema de TV digital, e a maneira de evitá-lo é um assunto à parte. Cabe a cada país escolher o método de proteção que melhor lhe convém. Trata-se de uma escolha distinta da opção entre os três padrões, mas igualmente importante.
Agora é o momento certo para tomar as providências necessárias no sentido de garantir a proteção do conteúdo transmitido pela TV digital aberta brasileira. O governo federal e o Congresso Nacional demonstraram grande liderança no combate à comercialização não autorizada do conteúdo criativo protegido por direito autoral em outras áreas, graças aos esforços da CPI da Pirataria e do Conselho Nacional de Combate à Pirataria e Delitos Contra a Propriedade Intelectual (CNCP).
As autoridades brasileiras agora têm mais uma oportunidade para demonstrar a mesma liderança no setor da TV digital aberta. Impedir a redistribuição não autorizada via internet das transmissões da TV digital aberta é uma questão fundamental, até agora ausente do debate nacional, que não pode ser deixada de lado.

Steve Solot, mestre em economia pela Universidade de Boston (EUA), é vice-presidente sênior para a América Latina da Motion Picture Association (entidade que representa os sete maiores estúdios cinematográficos americanos).


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