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TENDÊNCIAS/DEBATES
A imaginação do desastre
LUIZ FELIPE PONDÉ
Prefiro ver a polêmica a respeito das pesquisas com células-tronco embrionárias na perspectiva de uma história do futuro
SOU A favor ou contra a manipulação de células-tronco embrionárias? A pergunta revela o modo estreito da polêmica. Prefiro vê-la
na perspectiva de uma história do futuro. Proponho um recurso literário
inspirado nos exercícios críticos do
argentino Jorge Luis Borges, partindo do conceito de imaginação do desastre do americano Henry James.
Parece-me inevitável a legalização
da pesquisa com células embrionárias humanas, pois a emancipação dos
homens e mulheres demanda uma indústria da biofelicidade. Mas não é tudo. Imaginemos o que diria um articulista do ano 3008 sobre a questão.
"No início do século 21, o mundo foi
tomado por polêmicas que marcaram
a entrada definitiva da cultura bio na
história. Foi difícil para a inteligência
da época compreender que a bioemancipação só aconteceria quando
políticas do humano tomado como
objeto fossem estabelecidas pelas democracias. Tal processo implicou esforços gigantescos da então incipiente ciência preventiva da reprodução.
As populações, miseravelmente limitadas aos modos de reprodução
pré-históricos (confundia-se sexualidade com reprodução), entendiam o
termo "humano" como tendo uma
aura de "divindade" -palavra que, na
época, guardava o mesmo significado
que a ela atribuíam nossos ancestrais
nas savanas africanas há 100 mil anos.
A reprodução humana ainda não
era parte do mercado de bioprogramação, traço indicativo do atraso que
imperava nas populações condenadas
a superstições, como a confusão entre
"amor" e "acaso" na reprodução: entregava-se à arbitrariedade de um orgasmo o destino da vida humana.
Historiadores afirmam, segundo
documentos das primeiras decisões
jurídicas que finalmente libertaram a
noção de "humano" das malhas metafísicas, que era comum às populações
de então ver nas biocontrovérsias
apenas uma questão da antiga indústria farmacêutica. Hoje sabemos que
ali acontecia a passagem do estado de
caçador-coletor para a agricultura no
tocante à reprodução da vida.
Só lentamente se percebeu que,
sem um prévio esvaziamento do uso
conservador da palavra "humano",
seria impossível a revolução baseada
na manipulação legítima da matéria
humana. Práticas libertárias como o
"aborto", termo que caiu em desuso
com a noção de "liberdades reprodutivas", também ganharam com esse
esvaziamento. O desperdício de fetos
deu lugar a uma progressista legislação a favor da utilização eficaz desse
material na indústria cosmética.
As forças opressoras insistiam que
"humano" devia ser entendido também no sentido de agente sem atividade política democrática real (um
absurdo lógico, já que hoje sabemos
que são as práticas democráticas que
definem a priori o que é humano e o
que não é) e, assim, impediam a livre
circulação dos bens reprodutivos humanos no mercado de biocapitais, fator essencial para a liberação dos bens
biológicos que nos deram uma vida
média ativa de cem anos.
A família guardava traços da ancestralidade patriarcal presa na falsa díade masculino/feminino, limitadora
de uma humanidade que é, na realidade, sexualmente polimorfa. Com a vitória da biotecnologia, a reprodução
da espécie superou a dependência da
falsa crença no masculino e feminino
como forma sexual da humanidade.
As cientistas sociais desde o final do
século 20 trabalhavam no sentido de
destruir qualquer significado da vida
que não o sociopolítico. Destruindo o
sentido comum de termos como "verdade", "mal", "bem", "masculino" ou
"feminino", abriram o caminho para a
certeza de que poderíamos redefinir
tudo a partir da propaganda, grande
instrumento do socioconstrutivismo.
Então chegamos à reorganização
legal do conceito de humano após a
aniquilação da indesejável metafísica
das palavras; juízes se lançaram à honrosa tarefa de recriar o mundo livre.
As resistências foram neutralizadas
graças à normalidade democrática.
Com a vitória definitiva da libertação
social de mercado e o surgimento da
emancipação científica, finalmente
se percebeu a necessidade que a democratização da saúde tinha de fundar uma política de reprodução humana sustentável: leis definiram as
condições necessárias para a produção de fetos viáveis.
Uma marca da época era também o
número desnecessário de crianças no
mundo."
De volta a 2008: mundo sombrio o
vivido por esse articulista do futuro,
em que percebemos, para quem vê
sutilezas, que a democracia pode ser
um modo invisível de fascismo.
LUIZ FELIPE PONDÉ é professor da pós-graduação em
ciências da religião da PUC-SP (Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo), da Faculdade de Comunicação da
FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado) e professor
convidado da pós-graduação da Escola Paulista de Medicina, Unifesp. É autor de, entre outras obras, "Do Pensamento no Deserto" (Edusp).
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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