São Paulo, terça-feira, 22 de abril de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A imaginação do desastre

LUIZ FELIPE PONDÉ

Prefiro ver a polêmica a respeito das pesquisas com células-tronco embrionárias na perspectiva de uma história do futuro

SOU A favor ou contra a manipulação de células-tronco embrionárias? A pergunta revela o modo estreito da polêmica. Prefiro vê-la na perspectiva de uma história do futuro. Proponho um recurso literário inspirado nos exercícios críticos do argentino Jorge Luis Borges, partindo do conceito de imaginação do desastre do americano Henry James.
Parece-me inevitável a legalização da pesquisa com células embrionárias humanas, pois a emancipação dos homens e mulheres demanda uma indústria da biofelicidade. Mas não é tudo. Imaginemos o que diria um articulista do ano 3008 sobre a questão.
"No início do século 21, o mundo foi tomado por polêmicas que marcaram a entrada definitiva da cultura bio na história. Foi difícil para a inteligência da época compreender que a bioemancipação só aconteceria quando políticas do humano tomado como objeto fossem estabelecidas pelas democracias. Tal processo implicou esforços gigantescos da então incipiente ciência preventiva da reprodução.
As populações, miseravelmente limitadas aos modos de reprodução pré-históricos (confundia-se sexualidade com reprodução), entendiam o termo "humano" como tendo uma aura de "divindade" -palavra que, na época, guardava o mesmo significado que a ela atribuíam nossos ancestrais nas savanas africanas há 100 mil anos.
A reprodução humana ainda não era parte do mercado de bioprogramação, traço indicativo do atraso que imperava nas populações condenadas a superstições, como a confusão entre "amor" e "acaso" na reprodução: entregava-se à arbitrariedade de um orgasmo o destino da vida humana. Historiadores afirmam, segundo documentos das primeiras decisões jurídicas que finalmente libertaram a noção de "humano" das malhas metafísicas, que era comum às populações de então ver nas biocontrovérsias apenas uma questão da antiga indústria farmacêutica. Hoje sabemos que ali acontecia a passagem do estado de caçador-coletor para a agricultura no tocante à reprodução da vida.
Só lentamente se percebeu que, sem um prévio esvaziamento do uso conservador da palavra "humano", seria impossível a revolução baseada na manipulação legítima da matéria humana. Práticas libertárias como o "aborto", termo que caiu em desuso com a noção de "liberdades reprodutivas", também ganharam com esse esvaziamento. O desperdício de fetos deu lugar a uma progressista legislação a favor da utilização eficaz desse material na indústria cosmética.
As forças opressoras insistiam que "humano" devia ser entendido também no sentido de agente sem atividade política democrática real (um absurdo lógico, já que hoje sabemos que são as práticas democráticas que definem a priori o que é humano e o que não é) e, assim, impediam a livre circulação dos bens reprodutivos humanos no mercado de biocapitais, fator essencial para a liberação dos bens biológicos que nos deram uma vida média ativa de cem anos.
A família guardava traços da ancestralidade patriarcal presa na falsa díade masculino/feminino, limitadora de uma humanidade que é, na realidade, sexualmente polimorfa. Com a vitória da biotecnologia, a reprodução da espécie superou a dependência da falsa crença no masculino e feminino como forma sexual da humanidade.
As cientistas sociais desde o final do século 20 trabalhavam no sentido de destruir qualquer significado da vida que não o sociopolítico. Destruindo o sentido comum de termos como "verdade", "mal", "bem", "masculino" ou "feminino", abriram o caminho para a certeza de que poderíamos redefinir tudo a partir da propaganda, grande instrumento do socioconstrutivismo.
Então chegamos à reorganização legal do conceito de humano após a aniquilação da indesejável metafísica das palavras; juízes se lançaram à honrosa tarefa de recriar o mundo livre. As resistências foram neutralizadas graças à normalidade democrática.
Com a vitória definitiva da libertação social de mercado e o surgimento da emancipação científica, finalmente se percebeu a necessidade que a democratização da saúde tinha de fundar uma política de reprodução humana sustentável: leis definiram as condições necessárias para a produção de fetos viáveis. Uma marca da época era também o número desnecessário de crianças no mundo."
De volta a 2008: mundo sombrio o vivido por esse articulista do futuro, em que percebemos, para quem vê sutilezas, que a democracia pode ser um modo invisível de fascismo.


LUIZ FELIPE PONDÉ é professor da pós-graduação em ciências da religião da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), da Faculdade de Comunicação da FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado) e professor convidado da pós-graduação da Escola Paulista de Medicina, Unifesp. É autor de, entre outras obras, "Do Pensamento no Deserto" (Edusp).

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