|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O Supremo de costas para Deus?
CANDIDO MENDES
O Supremo Tribunal Federal, acompanhando
o voto do ministro Carlos Ayres Britto, não está
dando as costas a Deus
É ESTA a pergunta feita a nossa
mais alta corte sobre a constitucionalidade das pesquisas com
células-tronco embrionárias que reptam a cultura política do país, no reconhecer o caráter laico do nosso Estado de Direito.
Ganhamos ultimamente no exterior todo o aplauso das conquistas pela democracia profunda, ao lado do
desenvolvimento econômico e social
nestes anos. E é ela que se põe à prova
agora nos limites em que o bem comum como razão de Estado deve ou
não responder a uma visão religiosa
dos limites da vida nas suas implicações jurídicas.
Seria difícil, nas culturas mais
adiantadas do Ocidente, que uma polêmica como essa ganhasse relevo, inclusive vinda de uma ação do próprio
Ministério Público, ao forçar esse debate que diz respeito ao âmbito das
crenças, no processo histórico do nosso tempo.
A exigência de um Estado laico, no
absoluto pluralismo de idéias e crenças, se reitera na mensagem insistente, senão profética, do papa Bento 16.
O pontífice quer buscar o anúncio no
seio da encarnação, no que o nosso
tempo traga pelos seus impasses a esperança de uma moção adiante.
Estamos apenas no início dessa extraordinária abordagem da modernidade pela igreja, a despertar no concreto os seus valores de verdade, de
par com o testemunho de uma coexistência, sem se valer das situações anteriores de sacralização da ordem pública no cristianismo ocidental.
Até onde o pleito no Supremo Tribunal Federal exprime ainda essa raiz
de catolicidade, que continua, ainda, a
permear as nossas instituições?
Estaria essa ação contra o artigo 5º
da Lei de Biossegurança em consonância com o real respeito pelo Ministério Público da ordem secular que
representa?
O voto "leading" e nítido do ministro do Supremo Carlos Ayres Britto
precisou que o que interessa ao Direito é a disciplina do bem maior, em situação de conflito entre a vida e a potencialidade de vida.
Nessa decisão prima, por sua vez, a
probabilidade do benefício social efetivo entre as alternativas: fatalidade
do arremesso no lixo da fieira de embriões congelados diante da certeza
de seu aproveitamento como virtualmente qualquer tecido para a sobrevivência de outras vidas.
Nesse quadro, pode o poder público
prescindir de tomar decisão com base
nos debates concernentes à distinção
entre pré-embrião e embrião do Relatório Warnock, de 1985, ou na necessidade de nidação para reconhecer o
seu desenvolvimento possível.
O que está em causa é o conflito entre as urgências de proteção da vida
perfeita e ameaçada na sua sobrevivência e a "expectativa de vida", bem
como o contraste de impacto entre o
avanço biológico e o probabilíssimo
descarte do embrião.
A interrogação levantada pelas células-tronco leva à pergunta crucial
se, diante das novas tecnologias biológicas, prevalecerá a visão da natureza
como uma loteria genética imutável
ou corrigível, em termos desse imperativo do homem que é a conquista de
todas as potencialidades da fruição do
seu ser. A criação continuaria também pela tecnologia e remete à força
da liberdade, sob a complexidade
crescente do nosso acontecer. Rege-a
uma "autopoiesis", como o mais de vida, que requer a encarnação, contra o
torpor de sua inércia.
Quando o pontificado pede um humanismo como caminho para a transcendência, não pode fugir dos questionamentos do imobilismo, no entender nossa existência, diante do
sentido essencialmente dinâmico de
seu advento.
O Supremo Tribunal Federal,
acompanhando o voto do ministro
Carlos Ayres Britto, não está dando as
costas a Deus. Realiza, sim, o que é o
específico do Direito, no seio de um
Estado laico, e não precisa do respaldo das fés ou das culturas para a garantia do bem comum e do próprio
-aí, da nossa humana condição.
CANDIDO MENDES, 79, membro da Academia Brasileira
de Letras e da Comissão de Justiça e Paz, é presidente do
"senior Board" do Conselho Internacional de Ciências Sociais da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Luiz Felipe Pondé: A imaginação do desastre Próximo Texto: Painel do Leitor Índice
|