São Paulo, terça-feira, 22 de abril de 2008

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O Supremo de costas para Deus?

CANDIDO MENDES
O Supremo Tribunal Federal, acompanhando o voto do ministro Carlos Ayres Britto, não está dando as costas a Deus

É ESTA a pergunta feita a nossa mais alta corte sobre a constitucionalidade das pesquisas com células-tronco embrionárias que reptam a cultura política do país, no reconhecer o caráter laico do nosso Estado de Direito.
Ganhamos ultimamente no exterior todo o aplauso das conquistas pela democracia profunda, ao lado do desenvolvimento econômico e social nestes anos. E é ela que se põe à prova agora nos limites em que o bem comum como razão de Estado deve ou não responder a uma visão religiosa dos limites da vida nas suas implicações jurídicas.
Seria difícil, nas culturas mais adiantadas do Ocidente, que uma polêmica como essa ganhasse relevo, inclusive vinda de uma ação do próprio Ministério Público, ao forçar esse debate que diz respeito ao âmbito das crenças, no processo histórico do nosso tempo.
A exigência de um Estado laico, no absoluto pluralismo de idéias e crenças, se reitera na mensagem insistente, senão profética, do papa Bento 16.
O pontífice quer buscar o anúncio no seio da encarnação, no que o nosso tempo traga pelos seus impasses a esperança de uma moção adiante.
Estamos apenas no início dessa extraordinária abordagem da modernidade pela igreja, a despertar no concreto os seus valores de verdade, de par com o testemunho de uma coexistência, sem se valer das situações anteriores de sacralização da ordem pública no cristianismo ocidental.
Até onde o pleito no Supremo Tribunal Federal exprime ainda essa raiz de catolicidade, que continua, ainda, a permear as nossas instituições?
Estaria essa ação contra o artigo 5º da Lei de Biossegurança em consonância com o real respeito pelo Ministério Público da ordem secular que representa?
O voto "leading" e nítido do ministro do Supremo Carlos Ayres Britto precisou que o que interessa ao Direito é a disciplina do bem maior, em situação de conflito entre a vida e a potencialidade de vida.
Nessa decisão prima, por sua vez, a probabilidade do benefício social efetivo entre as alternativas: fatalidade do arremesso no lixo da fieira de embriões congelados diante da certeza de seu aproveitamento como virtualmente qualquer tecido para a sobrevivência de outras vidas.
Nesse quadro, pode o poder público prescindir de tomar decisão com base nos debates concernentes à distinção entre pré-embrião e embrião do Relatório Warnock, de 1985, ou na necessidade de nidação para reconhecer o seu desenvolvimento possível.
O que está em causa é o conflito entre as urgências de proteção da vida perfeita e ameaçada na sua sobrevivência e a "expectativa de vida", bem como o contraste de impacto entre o avanço biológico e o probabilíssimo descarte do embrião.
A interrogação levantada pelas células-tronco leva à pergunta crucial se, diante das novas tecnologias biológicas, prevalecerá a visão da natureza como uma loteria genética imutável ou corrigível, em termos desse imperativo do homem que é a conquista de todas as potencialidades da fruição do seu ser. A criação continuaria também pela tecnologia e remete à força da liberdade, sob a complexidade crescente do nosso acontecer. Rege-a uma "autopoiesis", como o mais de vida, que requer a encarnação, contra o torpor de sua inércia.
Quando o pontificado pede um humanismo como caminho para a transcendência, não pode fugir dos questionamentos do imobilismo, no entender nossa existência, diante do sentido essencialmente dinâmico de seu advento.
O Supremo Tribunal Federal, acompanhando o voto do ministro Carlos Ayres Britto, não está dando as costas a Deus. Realiza, sim, o que é o específico do Direito, no seio de um Estado laico, e não precisa do respaldo das fés ou das culturas para a garantia do bem comum e do próprio -aí, da nossa humana condição.


CANDIDO MENDES, 79, membro da Academia Brasileira de Letras e da Comissão de Justiça e Paz, é presidente do "senior Board" do Conselho Internacional de Ciências Sociais da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).

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