São Paulo, quinta-feira, 22 de maio de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Devassar local do crime ajuda criminosos

ROMEU TUMA

Falhas de interdição permitem dissimular vestígios incriminadores, mesmo após o início das investigações

O CASO da menina Isabella, lançada de uma janela do sexto andar de um condomínio paulistano, evidencia quanto é importante preservar os locais de crime para impedir o favorecimento de criminosos. Da mesma forma que vários delitos de grande repercussão no passado, a exemplo do acontecido há 20 anos na rua Cuba, também em São Paulo, demonstrou como falhas de interdição permitem dissimular vestígios incriminadores, mesmo após o início das investigações. Falhas desse tipo sempre podem facilitar a defesa e dificultar a acusação em qualquer sistema jurídico-penal alicerçado no princípio "in dubio pro reo". Na maioria dos julgamentos por homicídio, os jurados e o magistrado confiam mais nas provas materiais do que nas testemunhais. Mesmo porque, em direito, costuma-se dizer que o testemunho é a "prostituta das provas".
Já me vali desses e de outros exemplos na tribuna do Senado para apelar aos delegados de Polícia quanto à necessidade de se preocuparem com o problema e exigirem dos agentes fiel cumprimento do Código de Processo Penal. Mesmo porque, queiram ou não, a lei é bem clara quanto às suas próprias responsabilidades.
Os criminologistas são unânimes em destacar a importância de entregar locais intactos aos peritos. Seria faccioso atribuir maior ou menor relevância ao que dizem autores do porte de Magalhães Noronha, Fernando Capez, Hélio Tornaghi, Fernando da Costa Tourinho Filho, Walter Acosta, além de docentes de todas as academias de polícia brasileiras. Nem a eles precisamos recorrer, tamanha é a objetividade do texto legal dedicado ao assunto. Desde a lei nº 8.862/94, descreve todos os procedimentos e as responsabilidades.
O código determina que o delegado de Polícia, tão logo tenha conhecimento do delito, compareça ao local e tome providências "para que não se alterem o estado e a conservação das coisas, até a chegada dos peritos criminais". Essa autoridade deverá ainda "apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais". Portanto, a norma processual é límpida e indubitável. Dispensa lucubrações. Todavia, o que vem acontecendo há décadas?
Os peritos do Instituto de Criminalística (IC) trabalham geralmente em locais prejudicados. Modernos recursos técnicos permitem recuperar boa parte dos vestígios latentes. Todavia, mesmo assim, sabe-se lá quantas provas os autores ou cúmplices conseguem destruir ou remover de locais devassados.
No dizer do ouvidor-geral de Polícia, trata-se de queixa comum em crimes de autoria desconhecida, como chacinas e execuções. Aliás, há algum tempo, a Folha teve o cuidado de acompanhar dez casos do gênero para documentar as condições de peritagem "in loco". Verificou que, em todos eles, "as preservações dos locais foram extremamente alteradas".
Em 2004, a banca examinadora para titulação de mestre em odontologia legal pela Unicamp descobriu um paradoxo referente à Polícia Militar paulista. A maioria dos 856 sargentos e soldados recém-formados, destinatários de um questionário acadêmico, demonstrou a aptidão necessária ao isolamento das cenas de crime. Então, por que tanta queixa quanto a alterações de locais? Essa é a pergunta que não quer calar.
Há pouco, um experiente perito do IC pregou, como única solução, castigo exemplar para policiais que prejudiquem locais. Foi enfático ao lembrar o seqüestro do publicitário Washington Olivetto: se dependesse de indícios coletados no cativeiro, os seqüestradores estariam impunes, porque, "quando a perícia chegou, não havia mais nada, policiais e jornalistas haviam destruído tudo".
Tenho total confiança na capacidade dos peritos do IC e do IML. Razões me sobram, desde que os requisitei para perícias difíceis, nos tempos desprovidos dos atuais recursos técnico-científicos, como aconteceu na descoberta dos despojos do criminoso nazista Josef Mengele. O exame de DNA, feito na Inglaterra anos depois, serviu apenas para confirmar as nossas conclusões.
Mas, como eu, todo perito conhece muito bem os riscos de enfrentar condições adversas em local prejudicado. Sabe que isso não faz sentido, exceto para os criminosos.


ROMEU TUMA, 76, senador da República (PTB-SP), é corregedor do Senado Federal e delegado aposentado da Polícia de São Paulo. Foi diretor-geral da Polícia Federal (1985-92) e secretário da Receita Federal (1992).

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br

Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Cássio Schubsky: "Big bug", o grande caos

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.