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TENDÊNCIAS/DEBATES
O óbvio: quadrinhos não são só para crianças
PAULO RAMOS e WALDOMIRO VERGUEIRO
Por trás dessa questão, parece estar um olhar ainda estreito sobre as histórias em quadrinhos, herdado das décadas de 1940 e 1950
REPORTAGEM DESTA Folha publicada na última terça-feira
(dia19) revelou que uma obra
em quadrinhos com palavrões e conotação sexual seria distribuída pelo
governo paulista a alunos do terceiro
ano do ensino fundamental. Em nota,
a administração estadual reconheceu
a falha e mandou recolher os 1.216
exemplares adquiridos.
O governador José Serra prometeu
punição aos responsáveis e instaurou
uma sindicância. Em entrevista ao telejornal "SPTV - 1ª Edição", da TV
Globo, classificou o livro em quadrinhos como um "horror", obra de
"muito mau gosto".
É preciso olhar criticamente esse
noticiário, pois corre o risco de haver
generalizações e reprodução de discursos antigos a respeito das histórias
em quadrinhos. É o caso da associação delas somente às crianças.
A obra em pauta -"Dez na Área,
Um na Banheira e Ninguém no
Gol"- não é direcionada ao público
infantil. O álbum foi pensado para o
leitor adulto, como confirmam o organizador da publicação, o ilustrador
Orlando Pedroso, e outros desenhistas do livro.
O governo de São Paulo acerta ao
não distribuir a obra a estudantes de
nove anos. Nessa idade, o aluno não
está preparado para uma leitura nesses moldes. Seria um desserviço pedagógico. Mas parece estar por trás
dessa questão um olhar ainda estreito
sobre as histórias em quadrinhos,
herdado das décadas de 1940 e 1950.
Tal olhar ainda está presente também em parte da imprensa. Reportagem sobre o assunto, exibida na edição noturna do "SPTV", começava
com a frase "as histórias são em quadrinhos, mas o conteúdo não tem nada de infantil". É um discurso que enxerga a linguagem como feita exclusivamente para crianças. É claro que o
conteúdo não é infantil: a obra foi direcionada ao leitor adulto. A falha, assumida pelo governo do Estado, foi
direcioná-la ao ensino fundamental.
Os quadrinhos, assim como a literatura, o teatro e o cinema, possuem
uma diversidade de gêneros. Um deles é o infantil, do qual faz parte a
Turma da Mônica, de Mauricio de
Sousa. Mas há muitas outras produções, direcionadas a diferentes leitores. Inclusive aos adultos, como provam muitas livrarias e as tiras publicadas neste jornal.
O mesmo discurso tende a ver os
quadrinhos de forma infantilizada ou
não séria. Essa generalização evidencia desconhecimento sobre as histórias em quadrinhos e sua produção e
afastou das escolas, por décadas, essa
forma de leitura.
Os primeiros passos para a inclusão
"oficial" dos quadrinhos no ensino
ocorreram no fim do século passado
com a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação e, pouco depois, nos PCN
(Parâmetros Curriculares Nacionais), ainda no governo Fernando
Henrique Cardoso, quando o atual
secretário estadual da Educação,
Paulo Renato Souza, era ministro da
Educação e do Desporto. Os parâmetros traziam orientações para as práticas pedagógicas dos ensinos fundamental e médio.
Outra medida que levou as obras
em quadrinhos às escolas ocorreu na
gestão do presidente Luiz Inácio Lula
da Silva. A partir de 2006, publicações em quadrinhos foram incluídas
na lista do PNBE (Programa Nacional
Biblioteca da Escola), que distribui livros para escolas de todo o país. A
prática foi repetida nos anos seguintes e também no edital deste ano.
Em 2008, a pesquisa "Retratos da
Leitura no Brasil", do Instituto Pró-Livro, revelou que as histórias em
quadrinhos encontram forte eco entre os brasileiros. É o gênero mais lido entre os homens e o sétimo mais
listado pelas mulheres. Especificamente entre estudantes até a quarta
série, os quadrinhos são o terceiro
item mais mencionado (36%).
São corretas as iniciativas de levar
histórias em quadrinhos à sala de aula e ao roteiro de leitura dos estudantes. No entanto, há dois cuidados que
deveriam ser óbvios, mas que o noticiário recente revelou que não são.
O primeiro é haver uma seleção do
material, de modo a separar as obras
de melhor qualidade e destiná-las a
seu público ideal. "Dez na Área, Um
na Banheira e Ninguém no Gol" tem
qualidade. Mas não é destinada ao leitor juvenil.
O segundo cuidado é o de não associar as histórias em quadrinhos somente ao público infantil. Do contrário, corre-se o risco de repetir a falha
agora vista e de generalizar discursos
adormecidos, que são despertados
em situações-limite como essa.
PAULO RAMOS, 37, é jornalista e professor adjunto do
curso de letras da Unifesp (Universidade Federal do Estado de São Paulo). É autor de "A Leitura dos Quadrinhos".
WALDOMIRO VERGUEIRO, 52, é professor titular da Escola de Comunicações e Artes da USP e coordenador do
Observatório das Histórias em Quadrinhos, da mesma
universidade. É organizador do livro "Como Usar as Histórias em Quadrinhos na Sala de Aula".
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