São Paulo, domingo, 22 de julho de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Entre dois fogos

FREI BETTO


Pensei com meus botões: ainda não é de viagem de avião que tenho medo. É das autoridades responsáveis pela nossa segurança aérea


NA NOITE de terça, 17, teve início mais um primeiro dia do resto de minha vida. Já passei por situações de risco, mas nunca imaginei presenciar dois acidentes, no mesmo dia, nos dois principais aeroportos do país.
Às 15h da terça, eu estava na sala de embarque do Santos Dumont, no Rio de Janeiro, pronto para ingressar no vôo 2432 da Varig, rumo a São Paulo.
Súbito, ouvi uma gritaria perto dos raios X. Imaginei algum passageiro irritado por se ver obrigado a se submeter ao rigor da revista. Eram funcionários da Infraero; berravam para que todos saíssem imediatamente.
Na correria rumo às portas de emergência, senti um forte cheiro de queimado, como se um gás prevalecesse sobre o oxigênio. Exceto gritos desesperados de "fogo!" e ordens para sair o quanto antes, naquelas instalações recém-inauguradas nada vi que se parecesse com um sistema de segurança aos usuários. Não soou alarme, painéis eletrônicos não exibiam orientações, pilotos e comissários de bordo pareciam desorientados.
As aeronaves prestes a sair foram evacuadas, passageiros e tripulantes se juntaram à centena de pessoas que, como eu, foram conduzidas para o pátio. Dali vimos a densa fumaça preta emergindo do terceiro andar do prédio novo, ainda em obras.
Ante a perspectiva de longo atraso no reembarque, um passageiro exclamou: "Depois de querer que a gente banque o Marquês de Sade, agora querem nos fazer de Joana D'Arc". Os bombeiros de plantão eram insuficientes, e o reforço levou pelo menos 20 minutos para chegar ao local.
Após alguns minutos no pátio, exigiram que saíssemos pela antiga sala de desembarque. As luzes do Santos Dumont foram desligadas; ficamos ali no saguão, sem nenhuma informação da Infraero. Meia hora depois, os passageiros, informados pelas empresas de que não havia previsão de reinício dos vôos, começaram a se deslocar para o aeroporto Tom Jobim.
Aliviado, embarquei no vôo 3041 da TAM. O comandante nos preveniu de que, devido ao excesso de tráfego sobre São Paulo, nossa aterrissagem sofreria atraso. Passava das 18h40 quando, sob forte chuva, tocamos a pista de Congonhas. Fui aguardar minhas malas.
Parado ao lado da esteira, fiquei defronte ao vidro transparente que permite enxergar a pista, sem, no entanto, escutar nenhum ruído. Estranhei a excessiva demora das bagagens. Havia muita irritação por parte dos passageiros que, como eu, aguardavam.
Os poucos funcionários das empresas aéreas pareciam evitar tamanho assédio por informações. Tensos, guardavam silêncio. Notei que a pista não apresentava nenhum movimento de aeronaves.
Alguém ao meu lado comentou que, na cabeceira da pista, um avião cargueiro da TAM pegava fogo. Minha primeira reação foi supor uma confusão com o princípio de incêndio no Santos Dumont. Expliquei que o incêndio não era ali, era no Rio, e no prédio, não na aeronave.
Após longo tempo, as malas apareceram. Foi então que, ao ter acesso ao saguão de espera de passageiros, me dei conta de que algo muito grave ocorria. Pessoas agitadas, nervosas, aos prantos, insistiam em obter informações sobre o vôo 3054 da TAM, proveniente de Porto Alegre.
Ali dentro pareciam não ter noção do que se passara do lado de fora: a aeronave, que aterrissou logo em seguida à que viajei, ultrapassou a avenida Washington Luís e se chocou contra o prédio da TAM Express, vizinho a um posto de gasolina. Ela poderia ter entrado no prédio do aeroporto ou ter feito explodir o posto de gasolina, nos atingindo...
Com tudo paralisado, filas de passageiros se acumulavam nos check in; a maioria sem notícia do que ocorrera. Atribuía-se, pois, ao "caos aéreo". Ouviam-se, a todo momento, comentários desairosos às autoridades públicas.
Ao sair para a calçada do aeroporto, diante dos portões de embarque, fiquei com o coração apertado observando o clarão das chamas do Airbus-A320. Só então me dei conta da gravidade do acidente. Viaturas do Corpo de Bombeiros e da polícia aglutinavam-se no local. Lembrei do comentário do meu mecânico, seu Geraldo:
"Eu, andar de avião? Nunca. Jamais entro naquele tubo revestido de gasolina em combustão. Vou confiar num troço que voa lá em cima, mas que tem a oficina aqui embaixo?".
Pensei com meus botões: ainda não é de viagem de avião que tenho medo.
É das autoridades responsáveis pela nossa segurança aérea. Tudo indica que elas não conseguem pôr a cabeça no lugar e os pés na terra.

CARLOS ALBERTO LIBÂNIO CHRISTO , o Frei Betto, 62, frade dominicano e escritor, é autor de, entre outras obras, "A Mosca Azul" (Rocco). Foi assessor especial da Presidência da República (2003 - 2004).

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br


Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Eduardo Matarazzo Suplicy: Palavras e gestos de ACM eram marcas fortes

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.