São Paulo, quarta-feira, 22 de julho de 2009

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Intenções boas, resultados nem tanto

CLAUDIO J. D. SALES


Para evitar benefícios indevidos, o projeto de lei pode fazer com que milhões de famílias carentes percam o desconto na conta de luz

NO CAMPO das políticas públicas, há exemplos de iniciativas que, embora bem-intencionadas na teoria, geram resultados questionáveis na prática. Esse pode ser o destino do substitutivo do Senado ao projeto de lei da Câmara nº 12/08 sobre a tarifa social de energia elétrica (ou Programa de Baixa Renda).
Para evitar que um número reduzido de famílias de maior renda se beneficie indevidamente do programa, o projeto de lei pode fazer com que milhões de famílias carentes percam o desconto na conta de luz.
A tarifa social de energia elétrica visa promover a inclusão social por meio da concessão de descontos na tarifa de energia para a população de menor poder aquisitivo.
Hoje, são enquadradas automaticamente no programa as famílias que nos últimos 12 meses tiveram consumo médio mensal de até 80 kWh e não mais que um mês com consumo superior a 120 kWh. Também são beneficiadas as famílias que consomem entre 80 kWh e 220 kWh ao mês, desde que comprovem sua condição de baixa renda por meio do cadastramento em programas sociais ou no cadastro único do governo.
O texto do projeto do Senado elimina o enquadramento automático para consumo inferior a 80 kWh, exigindo que todas as famílias façam cadastramento no prazo de dois anos para continuar recebendo o benefício.
A motivação é evitar que consumidores de alta renda se beneficiem do desconto automático -seria o caso de flats ou casas de veraneio que, por serem de uso esporádico e eventual, acabam apresentando consumo inferior aos 80 kWh/mês.
A proposta, porém, parece não levar em conta nossa realidade social.
Um consumo de 80 kWh/mês é, por exemplo, o de uma residência de quatro cômodos com geladeira pequena e um chuveiro elétrico. Muito pouco.
Segundo o IBGE, 89% dos domicílios brasileiros possuem rendimento de até dez salários mínimos. Ou seja, é razoável supor que essa enorme maioria de consumidores não se enquadre na categoria de proprietários de flat e casas de veraneio.
A questão que se coloca é a dificuldade prática de realizar um cadastramento da magnitude que o projeto de lei propõe. O fim do enquadramento automático implicará que todos os consumidores tenham que comprovar sua condição socioeconômica.
Muitas famílias pobres, sobretudo as mais necessitadas, estão distantes dos centros urbanos e são compostas por indivíduos sem documentação regular, com baixo grau de instrução e pouco conhecimento sobre os programas sociais do governo, fatores que as impedem de se cadastrarem e obter o desconto na conta de luz.
Essa dificuldade pode ser observada nos sucessivos adiamentos do prazo para que famílias com consumo mensal entre 80 kWh e 220 kWh comprovem sua condição socioeconômica para fazer jus ao benefício da tarifa social, como já é requerido pela legislação atual. Essa categoria de consumo representa 23% do universo das famílias de baixa renda, cabendo os 77% restantes aos consumidores com consumo de até 80 kWh, hoje enquadrados automaticamente.
Ou seja, com a eliminação do enquadramento automático, a dificuldade de cadastramento será mais que quadruplicada. Estima-se que mais de 5 milhões de famílias venham a perder o direito da tarifa social.
Existem maneiras operacionalmente mais simples e eficazes de reduzir o problema dos flats e das casas de veraneio. Uma delas é retirar da lista de beneficiados as unidades de baixo consumo com mesmo CPF de unidades de alto consumo dentro de uma mesma área de concessão.
Essa medida não afeta as famílias de baixa renda e recai diretamente sobre as segundas propriedades de famílias mais prósperas, na qual se enquadram flats e casas de veraneio.
O projeto de lei de tarifa social deveria levar em conta a enorme distância muitas vezes existente entre uma boa proposta no papel e a viabilidade de sua implementação na prática.
Em certo sentido, o projeto reconhece essa dificuldade ao conceder o prazo de dois anos para que as famílias se cadastrem. Nosso temor, entretanto, é que, transcorrido o prazo, a dificuldade do cadastramento se mantenha nos níveis atualmente enfrentados pelo governo.
Se isso ocorrer, assistiremos a mais uma política pública que, embora bem-intencionada, produzirá resultados desastrosos para a sociedade.


CLAUDIO J. D. SALES , engenheiro mecânico industrial, é presidente do Instituto Acende Brasil, entidade que promove a transparência e a sustentabilidade no setor elétrico brasileiro.

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