São Paulo, domingo, 22 de agosto de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Dois escândalos e uma proposta

FÁBIO KONDER COMPARATO

Muita gente acalenta, desde a infância, o sonho de vir a ser um dia ministro de Estado.
O fascínio por esse título é curioso, pois a palavra sofreu na história uma verdadeira revolução semântica. "Minister", em latim, derivado de "minus", designava o servidor ou criado doméstico. Camões, nos "Lusíadas", ainda emprega o vocábulo com essa acepção. Ao descrever, na estrofe 96 do canto 2º, a pomposa visita que o rei de Melinde fez ao Gama em sua nau capitânia, diz que Sua Majestade vinha protegido da "solar quentura" por um guarda-sol, empunhado por um ministro.
Em nossa mal chamada República, porém, o cargo de "Ministro" (sempre com maiúscula) passou a contar, além de grande imponência, com uma apreciável vantagem prática: o seu titular possui o privilégio de não ser processado, nem criminalmente, nem por atos de improbidade administrativa, senão perante o Supremo Tribunal Federal.
O atual presidente do Banco Central (ou "governor", como ele prefere ser chamado), que é um homem de grande senso prático, sabe o que vale esse privilégio. Foi por isso que pleiteou e obteve a elevação do seu cargo ao nível ministerial, mediante medida provisória baixada pelo presidente da República.
O episódio é escandaloso sob mais de um aspecto.


Ninguém ignora que no atual governo o presidente do Banco Central é inamovível: ele dita a política econômica


No regime republicano, nenhum agente público, a começar pelo chefe de Estado, pode praticar, nessa qualidade, atos que não digam respeito ao bem comum do povo, mas visem tão-só à satisfação de interesses particulares. Em direito público, a desobediência encoberta a esse princípio é tradicionalmente capitulada como desvio de poder. O agente, sob a aparência de exercer uma competência regular, na verdade frauda a finalidade com que ela lhe foi atribuída, quer pela lei, quer pela Constituição.
O governo, aliás, não se preocupou em encobrir a fraude. Nem sequer pretextou que o objetivo da criação da nova categoria ministerial fosse o aperfeiçoamento da máquina administrativa. Simplesmente reconheceu que se tratava de criar às pressas um privilégio pessoal para um agente do Poder Executivo, mediante o uso de uma prerrogativa excepcional atribuída ao chefe de Estado: a medida provisória.
Tem-se dito que essa decisão contraria o propósito do governo, tantas vezes declarado, de dar independência ao Banco Central. Puro engano. Os ministros de Estado podem, efetivamente, ser exonerados pelo presidente da República a qualquer tempo (Constituição, art. 84, inciso 1º), porque não passam de meros auxiliares seus (mesmo artigo, inciso 2º), não tendo autonomia nem poderes próprios. Mas ninguém ignora que no atual governo o presidente do Banco Central é inamovível: ele dita a política econômica, que é diligentemente aplicada pelo ministro da Fazenda e pelo próprio presidente da República.
Este o primeiro escândalo. Mas o segundo não é menos grave.
Em 1997, Fernando Henrique Cardoso, não ousando ou não podendo suprimir da Constituição o monopólio estatal do petróleo, conseguiu arrancar do Congresso a lei nº 9.478, que facultou a apropriação por empresas privadas, inclusive estrangeiras, do petróleo extraído do nosso território.
Agora, quando o mundo todo se acha conflagrado na perspectiva do esgotamento dessa fonte de energia em futuro próximo, o governo federal decide dar prosseguimento à política perdidamente inconstitucional de entrega de áreas de lavra de petróleo a empresas privadas, inclusive estrangeiras, garantindo-lhes a plena propriedade do produto a ser extraído. O governador do Estado do Paraná tomou a patriótica iniciativa de questionar a constitucionalidade da lei nº 9.478 perante o Supremo Tribunal Federal. O ajuizamento da demanda, porém, não impediu que o governo levasse a efeito mais um leilão para privatizar áreas de exploração de petróleo.
Mas -perguntará o leitor- o que fazer diante de tudo isso? Amaldiçoar o mundo político e se concentrar em definitivo na vida privada? Creio que uma outra resposta é possível. Como reza o ditado, há males que vêm para bem. Quem sabe os dois escândalos acima apontados venham, enfim, abrir os olhos de todos para a urgente necessidade de mudar radicalmente o modo de ação política entre nós.
A Ordem dos Advogados do Brasil acaba de tomar a oportuna decisão de lançar uma campanha nacional em defesa da República e da democracia. Trata-se de dar ao povo, ao cabo de uma tão longa e amarga experiência, aquele poder soberano do qual ele nunca deveria ter sido privado: o de controlar diretamente a ação de todos os órgãos do Estado, a fim de impedir a subordinação do bem comum ao interesse particular, ou a subserviência da nação ao interesse estrangeiro.
Há boas razões para esperar que todas as forças vivas da nação venham se juntar à OAB nessa missão regeneradora da nossa vida política.

Fábio Konder Comparato, 67, advogado, doutor pela Universidade de Paris, é professor titular da Faculdade de Direito da USP e doutor honoris causa da Universidade de Coimbra.


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