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ROBERTO MANGABEIRA UNGER
Mudar a economia de fora dela
O que deve fazer o novo governo
com a economia nos primeiros
meses do mandato? Nada. E o que deve fazer o governo a respeito de tudo o
que ultrapassa os limites da economia:
o cumprimento dos direitos assegurados nas leis e na Constituição, o resgate do sistema público de educação e o
reposicionamento do Brasil no mundo? Muito. Meu tema é a relação entre
esse nada e esse muito. A melhor maneira de mudar a economia é mudá-la
de fora dela.
Fazer nada com a economia significa passar pelo desfiladeiro do início do
governo com o mínimo de dano às
obrigações contratuais do Estado. Rejeitar medidas voluntariosas que forcem uma baixa dos juros ainda não
justificada pelo restabelecimento da
confiança. E despir o Ministério da Fazenda de poder e de glamour, devolvendo-o à tarefa modesta e dura de
guardar o caixa do governo.
Há duas exceções importantes ao
princípio de fazer nada com a economia. A primeira exceção é avançar na
consolidação fiscal, simplificando o
regime tributário, aumentando, por
imperativo estratégico temporário, o
superávit primário e impondo teto
único à previdência dos funcionários
e dos assalariados. A segunda exceção
é organizar, por reformas do mercado
de capitais e dos fundos previdenciários, os mecanismos transparentes
que nos permitam mobilizar melhor a
poupança de longo prazo para o investimento de longo prazo. Essa organização porá fim à mistura suja de negócios e de política que vicejou, com a
ajuda dos fundos de pensão e dos empresários aventureiros, em torno das
privatizações. A luz matará os vermes.
Fazer nada a respeito da economia
quer dizer abandonar a ilusão mercantilista de que o aumento das exportações nos possa servir como atalho para retomar o crescimento. Fortalecer a integração competitiva do
Brasil na economia mundial, exportando e importando mais, e aprofundar o mercado interno, assentando o
consumo de massa na valorização
gradativa dos salários, são dois lados
da mesma empreitada. Fazer nada
com a economia implica rejeitar a tentação de buscar prosperidade em
acertos com os graúdos, os influentes
e os organizados. A verdadeira política industrial de que precisa o país passa pela desfazimento de tais acertos e
pela subordinação de seus beneficiários às regras impessoais com que estão desacostumados a conviver.
De onde virá, então, o que o país tanto deseja - desenvolvimento com
justiça, baseado na redistribuição da
renda e na democratização das oportunidades? Virá de fora da economia.
Virá de revolução no cumprimento
dos direitos individuais já concedidos
pelas leis e pela Constituição. Da melhora na qualidade do ensino público.
Da disposição do governo de promover os alunos talentosos e aplicados,
permitindo-lhes derrotar os herdeiros
que continuam a abiscoitar as posições privilegiadas. Do ataque frontal
às humilhações que sofrem os negros
e as mulheres. Da radicalização da
concorrência e da meritocracia em todos os departamentos da vida brasileira, de acordo com o compromisso de
impor o capitalismo aos capitalistas. E
de política externa que nos abra o espaço da afirmação nacional: colocar
nossas negociações comerciais sobre a
base da grande política de aproximações e parcerias em todo o mundo e
entender-nos com os Estados Unidos
de maneira que nos amplie a liberdade para abrir nosso próprio caminho.
Não é nem aventura revolucionária
nem humanização do inevitável. É a
democratização, ainda que tardia, do
Brasil. É isso -sem mais nem menos- o que o país quer de seu novo
governo.
Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
site: www.law.harvard.edu/unger
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