São Paulo, terça-feira, 22 de outubro de 2002

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Mudar a economia de fora dela

O que deve fazer o novo governo com a economia nos primeiros meses do mandato? Nada. E o que deve fazer o governo a respeito de tudo o que ultrapassa os limites da economia: o cumprimento dos direitos assegurados nas leis e na Constituição, o resgate do sistema público de educação e o reposicionamento do Brasil no mundo? Muito. Meu tema é a relação entre esse nada e esse muito. A melhor maneira de mudar a economia é mudá-la de fora dela.
Fazer nada com a economia significa passar pelo desfiladeiro do início do governo com o mínimo de dano às obrigações contratuais do Estado. Rejeitar medidas voluntariosas que forcem uma baixa dos juros ainda não justificada pelo restabelecimento da confiança. E despir o Ministério da Fazenda de poder e de glamour, devolvendo-o à tarefa modesta e dura de guardar o caixa do governo.
Há duas exceções importantes ao princípio de fazer nada com a economia. A primeira exceção é avançar na consolidação fiscal, simplificando o regime tributário, aumentando, por imperativo estratégico temporário, o superávit primário e impondo teto único à previdência dos funcionários e dos assalariados. A segunda exceção é organizar, por reformas do mercado de capitais e dos fundos previdenciários, os mecanismos transparentes que nos permitam mobilizar melhor a poupança de longo prazo para o investimento de longo prazo. Essa organização porá fim à mistura suja de negócios e de política que vicejou, com a ajuda dos fundos de pensão e dos empresários aventureiros, em torno das privatizações. A luz matará os vermes.
Fazer nada a respeito da economia quer dizer abandonar a ilusão mercantilista de que o aumento das exportações nos possa servir como atalho para retomar o crescimento. Fortalecer a integração competitiva do Brasil na economia mundial, exportando e importando mais, e aprofundar o mercado interno, assentando o consumo de massa na valorização gradativa dos salários, são dois lados da mesma empreitada. Fazer nada com a economia implica rejeitar a tentação de buscar prosperidade em acertos com os graúdos, os influentes e os organizados. A verdadeira política industrial de que precisa o país passa pela desfazimento de tais acertos e pela subordinação de seus beneficiários às regras impessoais com que estão desacostumados a conviver.
De onde virá, então, o que o país tanto deseja - desenvolvimento com justiça, baseado na redistribuição da renda e na democratização das oportunidades? Virá de fora da economia.
Virá de revolução no cumprimento dos direitos individuais já concedidos pelas leis e pela Constituição. Da melhora na qualidade do ensino público. Da disposição do governo de promover os alunos talentosos e aplicados, permitindo-lhes derrotar os herdeiros que continuam a abiscoitar as posições privilegiadas. Do ataque frontal às humilhações que sofrem os negros e as mulheres. Da radicalização da concorrência e da meritocracia em todos os departamentos da vida brasileira, de acordo com o compromisso de impor o capitalismo aos capitalistas. E de política externa que nos abra o espaço da afirmação nacional: colocar nossas negociações comerciais sobre a base da grande política de aproximações e parcerias em todo o mundo e entender-nos com os Estados Unidos de maneira que nos amplie a liberdade para abrir nosso próprio caminho.
Não é nem aventura revolucionária nem humanização do inevitável. É a democratização, ainda que tardia, do Brasil. É isso -sem mais nem menos- o que o país quer de seu novo governo.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.

site: www.law.harvard.edu/unger


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