São Paulo, sexta-feira, 22 de outubro de 2004 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES A esquerda mecânica
CESAR MAIA
Isso não me deixa satisfeito. Ao contrário. Lembro-me das associações pró-melhoramentos que o PCB liderava nos anos 40 e 50. Lembro que os comunistas disputavam palmo a palmo com os trabalhistas orgânicos e populistas a representação popular e sindical. Lembro que em 1947, nas eleições municipais, no Rio, o PCB ganhou disparado, com 34% dos votos, jogando poeira nos olhos da UDN, que marcou 18%. Lembro das faculdades, dos grêmios e diretórios e da mobilização dos jovens. Lembro da emoção de artistas e intelectuais e de sua presença militante. Das passeatas e das prisões heróicas. Os espaços que a esquerda abriu estão hoje ocupados pelo mais rasteiro e grave populismo de direita, herdeiro de Adhemar de Barros, de Tenório Cavalcanti e de Chagas Freitas. Um populismo de clientela, de patronagem, trazendo no abre-alas um ilusionismo religioso, um populismo neopentecostal. Nunca a religião foi, mais do que hoje, "o ópio do povo", através, é claro, dessas práticas. A responsabilidade -e digo com pesar- é da esquerda sem rumo. Numa linha de governo de proximidade social-democrata/social-liberal por vocação, mantivemos a hegemonia relativa entre os pobres, emocionamos as massas e trouxemos o povo para a rua, para os ginásios, para os salões, para a TV; recuperamos a militância jovem e até o apoio aberto de artistas e intelectuais. Falamos de servidor público, de salário, de emprego, de aposentados, de Estado, de favelas, de pobres... A crítica anterior da falta de "rosto humano" e de "sensibilidade social", que a esquerda tradicional fazia com tanto prazer, voltou-se contra ela. Talvez a explicação esteja numa memória industrial do apogeu do século 20, época da hegemonia da indústria metal-mecânica, quando a esquerda e o povo andavam tão próximos. Época da massificação, da produção em série, dos grandes comícios, da impessoalidade das massas, do proletariado difuso, dos símbolos e marcas. O passado marcou fundo o presente e os métodos, que não mudam, não falam mais a uma sociedade de indivíduos, interativa, da informação e da eletrônica, que inverteu a lógica do produtor para a lógica do consumidor, do cidadão. Nos anos de crise em Nova York, quando começava a ser questionada a cidade dos carros, do "bota abaixo", das remoções insípidas, das políticas e das obras públicas relativas, surge a resistência contra a demolição do Village e do Soho, dirigida com mão-de-ferro por Robert Moses, que as conduziu por mais de 30 anos com liberdade financeira e à margem dos prefeitos. Essa resistência foi liderada por Jane Jacobs, que apresentou a todos a cidade das pessoas, dos vizinhos. Pela primeira vez, mobilizou-se a opinião pública e a opinião política. Evitou-se o pior, depois do choque que trouxe a demolição da Penn Station. Lembro que somente em 1965 foi criado em Nova York o Departamento de Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural. Naquele momento, um escritor -peço desculpas por esquecer o nome-, referindo-se a Moses, disse: "Ele adora o povo, mas detesta as pessoas". Minha tradução, adaptada, aplica-se à nossa esquerda de hoje. Permanece numa sociedade industrial, da massificação em série, vê as classes -cuja percepção é cada vez mais confusa- como um todo uniforme em que só há sobrenomes e não conhece os indivíduos por seus nomes e hábitos. Não se emociona com as suas vidas, suas casas, seus sofrimentos, suas vitórias. Não vai às ruas, aos becos, às praças, às vielas. Não conhece os mistérios das cidades incorporados às pessoas. A esquerda hoje, no Rio, não tem voto porque fala aos bisavós dos atuais eleitores. A esquerda daqui e de hoje "adora o povo, mas detesta as pessoas" -a Maria e o João, a Sandrinha e o Quinzinho, seus lamentos, suas alegrias, seus problemas. Nunca conversou com uma menina gestante para conhecer as suas razões. Não é mais aquela, pois o mundo é outro. Dessincronizada no tempo, é, agora, apenas e lamentavelmente, uma esquerda mecânica. Cesar Maia, 59, economista, é prefeito, pelo PFL, do Rio de Janeiro. Foi reeleito para cumprir mandato de 2005 a 2008. Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Marcos Nobre: Com a cabeça no lugar Índice |
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