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São Paulo, segunda-feira, 22 de outubro de 2007

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O momento "língua portuguesa" do Brasil

LUIZ COSTA PEREIRA JUNIOR


Ao falar, o brasileiro expressa sua identidade, que nunca é uniforme, e o país respira sua diversidade, que insiste em nos unir

A LÍNGUA portuguesa é desses assuntos aos quais parecemos dar importância só em ocasiões especiais, como com a recente badalação em torno da reforma ortográfica prevista para 2009.
A questão foi tratada com uma urgência preguiçosa, de quem poucas vezes pensa no idioma, tão habitual o seu uso. Por coisa de momentos, o tema saiu das marginais do noticiário e esboçou relevo até ser engolido pelo próximo bombardeio de novidades.
Não sem razão. Como reforma, o acordo ortográfico dos países lusófonos pouco simplifica. Em alguns casos, como o uso do hífen, até baratina o que já era confuso ("anti-semita", por exemplo, perde o sinal, e "microondas" ganha). Houve quem exagerasse e falasse da ortografia como "o" fator de organização da língua; por isso, a reforma ameaçaria "transformar o idioma". Mas, anunciada com temor ou desprezo, ela nem sequer é certeza. Portugal, que vê nela um "abrasileiramento" do idioma, resiste e pode melar o acordo.
Se vingar, haverá, claro, implicações no mercado (livros reeditados), no ensino e na mentalidade (esforço, mesmo temporário, para desaprender grafias, como "idéia" sem acento).
Já se viveu isso no país e sobrevivemos. Por isso, o assunto, na verdade, chama a atenção para outro aspecto, diria incidental, do português.
Sem dar pelota para a coisa, o país vive há uns dez anos o que se pode chamar de um "momento língua portuguesa". Mesmo que não vivamos a inclusão digital, nunca se escreveu tanto como agora. São 500 milhões de mensagens diárias só pelo MSN no país. Mais do que há dez anos, nunca se viu tanta faculdade no Brasil em razão da abertura, não entremos no mérito, promovida desde a era FHC: são 2.300 instituições privadas mandando alunos escreverem monografias, trabalhos e dissertações.
Temos um respeitável mercado editorial cujo tema é o idioma (quase 25 milhões de exemplares de dicionários, gramáticas etc. vendidos todo ano) e uma carência de informação básica que turbinou a procura por consultores de português com consultórios gramaticais na mídia.
Os últimos anos ainda mostraram outro grau da língua nas corporações.
É de imaginar que a retomada do fôlego econômico do país estimulou o relacionamento de empresas em seu próprio idioma. Há hoje a intuição de mais negócios mediados por tecnologias que enfatizam a comunicação -mensagens eletrônicas e apresentações com projeções em tela, que não podem exibir tropeços. E, em reuniões de trabalho, o desempenho retórico virou chave empresarial.
Quem muito escreve ou fala tem risco maior de expor sua eventual falha de formação. Daí pipocarem os cursos de português para brasileiros, executivos, secretárias e gerentes.
Em paralelo a essa demanda no mundo do trabalho, mais que antes, temos um circuito de estudos sobre a língua com uma consistência, uma pluralidade e um amadurecimento que permitem maior certeza nas afirmações sobre os fenômenos do idioma e um debate cada vez mais acalorado entre tendências acadêmicas.
A percepção hoje é a de que a língua vai bem, obrigado, não está ameaçada, não precisa de proteção, mas de promoção. Falta um projeto de promoção do idioma a integrar o país, que corrija as distorções de um ensino que virou fábrica de decorebas.
O vale-tudo do idioma está não tanto no uso cotidiano que o brasileiro faz dele, mas na filosofia de ensino, que não é uniforme. Cada região, cidade, escola e professor parecem atirar para um lado.
Há cinco anos, apesar disso, vivemos uma atmosfera institucional pelo idioma. O preconceito de linguagem não foi suficiente para impedir a chegada de Lula à Presidência; o governo de São Paulo e a Fundação Roberto Marinho criaram o único museu do mundo dedicado ao assunto, que agora virou inspiração para os ingleses; e o governo federal lançou o Instituto Machado de Assis, iniciativa a ser devidamente materializada, para promover o português no mundo e nas escolas do país.
A língua portuguesa não é a coisa chata das piores aulas, pode ser revigorante, ao ser percebida como aquilo que nos faz interagir, namorar melhor, vivenciar o cotidiano. A língua que usamos revela o que somos, e nem nos damos conta. Trai nossos preconceitos, nossas ênfases e os papéis que adotamos na sociedade.
Ao falar, o brasileiro expressa sua identidade, que nunca é uniforme, e o país respira sua diversidade, que insiste em nos unir.
Não será a badalação temporária por uma reforma duvidosa o único fato a nos lembrar disso.

LUIZ COSTA PEREIRA JUNIOR, 41, doutorando em filosofia e educação pela USP, é jornalista, editor da revista "Língua Portuguesa" (Segmento) e autor de "A Apuração da Notícia".

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br


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