São Paulo, sexta-feira, 22 de outubro de 2010

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JOSÉ SARNEY

Tiririca e suas dúvidas

Não é tão simples assim a análise do caso Tiririca, que está oscilando entre o jocoso e o jurídico. A verdade é que há várias implicações gramaticais e pedagógicas envolvidas nessa difícil definição de analfabeto.
Antigamente, o conceito de analfabeto estava circunscrito a saber ler e escrever. Hoje, surgiram várias graduações de analfabeto, mas a Constituição se refere apenas a "analfabeto". Criaram o analfabeto funcional, conceito vasto, e não raras vezes alguns diplomados são taxados de analfabetos disfuncionais.
As provas ginasiais, colegiais e universitárias muitas vezes são glosadas na imprensa como exemplos de absoluto analfabetismo superior. O analfabeto funcional é tido como quem só entende o que diz respeito à sua função, e daí passa a não entender nada.
Isso tem gerado discussões e controvérsias, de tal modo que hoje já se fala em alfabetização e letramento, que seria o caminho para o que era antigamente chamado letrado.
Discussões à parte sobre filologia, na verdade a questão são os conhecimentos de Tiririca, se ele é capaz de repetir em sons os caracteres e transformar sons em caracteres, isto é, ler e escrever.
O voto do analfabeto foi uma longa discussão martelada nas leis eleitorais desde o Império, quando a condição para votar e ser votado era ter uma boa situação financeira, o chamado voto censitário.
Até a Lei Saraiva -que sendo Saraiva foi redigida por Rui Barbosa- não se falava em analfabeto, talvez porque todos fossem. A partir dela se proibiu o voto do analfabeto.
Castelo Branco propôs emenda constitucional permitindo-lhes o voto, que não foi aprovada. Só em 1985, pela Emenda Constitucional 25, quando eu era presidente, o analfabeto teve direito a voto, mantido na Constituição de 1988.
A verdade é que o argumento de que a leitura era a única forma de instrução foi ultrapassado: com os avanços na mídia visual, todos sabem tudo, estão por dentro de tudo e podem opinar sobre tudo.
Um dia, perguntei ao grande compositor João do Vale -"rosa amarela quando murcha perde o cheiro"-, poeta dos melhores do Brasil, se sabia ler. Ele me respondeu: "Zé, ler eu sei, mas esses pinguinhos é que me atrapalham".
Outro episódio aconteceu comigo e o presidente Castelo.
Eu indiquei para diretor da Caixa no Maranhão certa pessoa. Um senador do Estado foi ao Castelo e disse que era um analfabeto. O presidente me indagou se era verdade. Eu disse: "Presidente, faça um ditado entre ele e os três senadores do Estado e, se ele tirar a menor nota, pode demitir".
Castelo riu e falou "Tá feito o teste, você ganhou".
Ora, com estes exemplos é o Tiririca que vai pagar pelo ensino brasileiro?


JOSÉ SARNEY escreve às sextas-feiras nesta coluna.

jose-sarney@uol.com.br


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