São Paulo, quarta-feira, 22 de novembro de 2000

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Renascimento fascista


Esse programa piloto de fascismo [a Abin", ensaiado com as bênçãos do Congresso, deve ser revisto de alto a baixo


ROBERTO ROMANO

Em data recente o Ministério Público Federal realizou o seu 17º encontro, com pessoas de todo o país. O tema, a impunidade, não poderia ser mais oportuno em nossa república. Foi analisado de várias formas um malefício que impede a esperança de instaurar entre nós o Estado democrático de direito.
A leitura do caderno com as teses debatidas e aprovadas no encontro é um exercício de reflexão cidadã. Ali existem propostas para o Estado enfrentar problemas de ordem jurídica e política na luta contra os crimes do colarinho branco, o narcotráfico, a improbidade administrativa. Para a mesa sobre os nexos entre Justiça e imprensa, tive a honra de ser convidado, com o jornalista Janio de Freitas, a expor idéias. Apresentei conceitos que julgo essenciais no combate à rapinagem. Minha tese é simples e tem a idade da Revolução Francesa.
Para que o povo não seja enganado, é preciso possibilitar-lhe acesso amplo aos saberes técnicos, científicos, humanísticos. A imprensa possui papel estratégico na batalha em prol da formação do eleitor consciente, adulto, responsável. Se não for quebrado o circuito que vai da falta de informação à escolha de meros demagogos, estaremos sempre à beira da tirania de pessoas que só respondem diante de oligarcas.
Após nossa fala (Janio de Freitas apresentou exemplos concretos das difíceis relações entre imprensa e Poder Judiciário), foram abertos os debates. Uma pergunta deixou-me apreensivo. "O que o senhor pensa da Abin?". Disse o que penso: "considero essa instituição um retorno ao fascismo". E, mais adiante, tive condições de ampliar o juízo, mostrando o quanto estamos em clima de Termidor no mundo e no Brasil.
As bombas contra os movimentos em prol das minorias, os apresentadores de televisão, do rádio que envergonham a classe jornalística com sua militância diária, caluniando a própria idéia de direitos humanos, o retorno, em cursos jurídicos, de autores como Carl Schmitt, tudo isso se coaduna com a volta dos serviços de espionagem. Somem-se à lista as censuras disfarçadas, os projetos como a "lei da mordaça" e outros atentados às liberdades públicas e particulares e temos o quadro definido de uma direção autoritária, para não dizer tirânica, na República Federativa do Brasil.
Depois do encontro dos procuradores, tivemos notícias da bisbilhotice oficial, ou oficiosa, na vida particular de líderes opostos ao Executivo federal. No rol dos espionados está justamente o procurador que nos interpelou sobre a Abin. É triste que, num evento em que se tenha homenageado cidadãos íntegros do Ministério Público, como o sr. Alvaro Augusto Ribeiro Costa, incansável promotor do civismo, e em que se recordaram o assassinato e ameaças de morte contra procuradores (além de outras perseguições, como a enfrentada pela dra. Amanda Figueiredo, no Recife, por exercer estritamente o seu ministério), estes últimos tenham sido obrigados a se preocupar com o terror de Estado, sob patrocínio do governo e do Legislativo.
Quando tudo indica que o nível da corrupção e da impunidade atinge patamares de verdadeira pandemia, assusta perceber que agentes do poder federal usam recursos públicos para intimidar os que denunciam os malefícios.
Esse costume da polícia secreta, que usa a delação e o anonimato irresponsável, mas pago, tem uma história. Ela começou com o golpe do Termidor contra a democracia francesa e se desenvolveu no império napoleônico. Romances como "O Vermelho e o Negro" mostram a impotência civil durante a tirania do corso. Na contra-revolução surgida depois de sua queda, todos os governos da Europa usaram essa arma contra os seus cidadãos. E se reinventou a tortura exorcizada por Beccaria e por Voltaire, a chantagem sobre familiares, o exílio e outros meios coercitivos, aproveitados pelos regimes totalitários do século 20.
Platão invectiva o tirano como alguém que espiona os dirigidos, porque não possui a sua confiança e amizade. Com base em informes obtidos por meios corruptos e ilegais, "se ele (o governante) suspeitar que alguns deles albergam pensamentos de liberdade que os afastem da obediência a ele, provocará desavenças, com o pretexto de os deitar a perder, entregando-os aos inimigos".
Por que produzir uma agência de controle dos particulares? Quando foi editado o AI-5 disseram que o presidente da República nunca o empregaria com imprudência. Um homem sério retrucou: "O presidente, não, mas e o guarda da esquina?". O AI-5 é uma nódoa na história do nosso povo. Existem duas perguntas quando enfrentamos leis como a que produziu a Abin: em favor de quem foram estabelecidas e para que servem?
Na democracia em que ocorrem os primeiros passos rumo à transparência do poder diante dos cidadãos, é de estarrecer que o movimento inverso seja o único realmente ensaiado, ou seja, a transparência dos cidadãos diante dos poderosos, através da espionagem, da censura, da mordaça. Esse programa piloto de fascismo, ensaiado com as bênçãos do Congresso Nacional, deve ser revisto de alto a baixo, em proveito da liberdade, da amizade, do valor definido sob um sublime alvo coletivo, a pátria comum de todos os brasileiros.


Roberto Romano, 54, filósofo, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp.



Texto Anterior: Frases
Próximo Texto: Candido Mendes: Dos dilemas aos plebiscitos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.