São Paulo, quarta-feira, 22 de novembro de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Lula e a esquerda

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS

58 milhões de brasileiros preferiram correr o risco de votar num governo que os pode desiludir a votar num que, de saída, já não os ilude

DEPOIS DA inesperada fragilidade revelada no primeiro turno, a vitória retumbante de Lula no segundo deixou o mundo estupefacto. É um acontecimento político notável, e o mérito cabe por inteiro a Lula. Só ele poderia reacender o entusiasmo da mobilização em milhares de militantes magoados e desiludidos pelos desacertos da sua política durante o primeiro mandato. Mas as razões do seu êxito são bem mais profundas e merecem reflexão.
A vitória de Lula representa um "choque de realidade" para as elites políticas que governaram o Brasil até 2002. A distância e a arrogância que as separam do país real e a acumulação histórica de ressentimento que isso criou entre as classes populares não lhes permitiram aproveitar as fragilidades do candidato Lula. 58 milhões de brasileiros, na sua maioria pobres, preferiram correr o risco de votar num governo que os pode desiludir a votar num governo que, à partida, já não os consegue iludir.
É inescapável a perplexidade causada por duas enormes dissonâncias cognitivas reveladas nessas eleições. A primeira consiste na discrepância entre a dramática polarização política, sobretudo no segundo turno, e as diferenças moderadas entre as duas propostas políticas, sobretudo se tivermos em conta as políticas do primeiro mandato de Lula e se descontarmos o tema privatizações.
A segunda reside em que o candidato que conquistou o voto e o coração de milhões de pobres é o mesmo que recebeu efusivas e cúmplices felicitações de Bush, a quem só interessa o bem-estar dos ricos e dos muito ricos.
Essa foi a única eleição recente na América Latina em que o candidato de esquerda não sofreu a interferência da embaixada norte-americana. Significam essas dissonâncias que alguém está a enganar alguém? Não necessariamente. A razão para elas está no fato de a distância que separa as elites oligárquicas das classes populares não ser apenas econômica, apesar de esta ser enorme num dos países mais injustos do mundo. É também cultural e racial.
Isso explica o êxito da política simbólica de Lula, a sua capacidade para ampliar o impacto político de medidas relativamente tímidas, devolvendo a auto-estima a milhões de brasileiros humilhados não apenas pela fome mas também pelas barreiras no acesso à educação e pelo racismo insidioso da suposta democracia racial.
Graças a tal capacidade, medidas não originariamente de esquerda, como o Bolsa Família, puderam ser constitutivas de cidadania social, e pequenas transferências de renda puderam ser transformadas em mudanças qualitativas. Tudo isso foi possível devido a uma sutil inversão do sinal político: atribuído por Lula, o Bolsa Família foi entendido pelos brasileiros como "isso é o mínimo que vos devo"; fosse atribuído por um presidente de direita, dissesse o que dissesse, seria sempre entendido como "isso é o máximo que vos devo". Essa inversão escapou aos analistas políticos.
O segundo mandato de Lula terá de ser diferente do primeiro. Com a lucidez habitual, Tarso Genro formulou o óbvio, que, em política, é quase sempre tabu: a era Palocci acabou. Só que acabou já há tempo, pelo menos desde que, no final de agosto, o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social aprovou por unanimidade os "Enunciados da Concertação". Entre eles, a baixa da taxa de juros para níveis médios internacionais nos próximos cinco anos e a duplicação da parcela da renda nacional apropriada pelos 20% mais pobres nos próximos 15.
A partir de 1º de janeiro, Lula terá de começar a preparar o pós-lulismo: uma forma de governação de esquerda que não dependa da capacidade de um líder carismático para disfarçar com o discurso da antipolítica a incapacidade para substituir a velha política por uma nova. Essa nova política tem de ser preparada de modo consistente, e o primeiro passo é certamente a reforma do sistema político e a reforma do Estado. Só elas permitirão concretizar as políticas de justiça social, cultural e racial em que os brasileiros depositaram a sua esperança.
Mas tudo isso só acontecerá se os brasileiros não se limitarem a esperar. E tudo leva a crer que assim sucederá. A plataforma política dos movimentos sociais -"Treze Pontos para um Projeto Popular para o Brasil"- apresentada a Lula em 19/10 é um sinal de que o tempo dos cheques em branco acabou e de que a luta contra a cultura política autoritária terá de ser travada com decisão para impedir que o golpismo ocorra, mesmo que a coberto da lei (exemplo grotesco dessa possibilidade é a vergonhosa sentença judicial contra o grande intelectual e democrata Emir Sader). Algures, entre os enunciados de concertação e os 13 pontos, a governação do segundo mandato será uma nova era.


BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, 65, sociólogo português, é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal). Escreveu, entre outros livros, "A Gramática do Tempo: para uma Nova Cultura Política" (Cortez, 2006).

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