São Paulo, domingo, 22 de dezembro de 2002

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FICÇÃO REAL

A raça só existe em nossas cabeças. Essa é a conclusão a que se chega a partir da interessantíssima pesquisa do grupo de Flavia Parra e Sérgio Danilo Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), publicada recentemente pela revista da Academia de Ciências dos Estados Unidos.
Não é de hoje que a ciência vem contestando o conceito de raça para a espécie humana. Os recentes avanços no campo da genômica, por exemplo, já bastaram para mostrar que pode haver mais diferenças genéticas entre dois indivíduos brancos do que entre um branco e um negro. Na verdade, a comparação de genomas nos mostra que a espécie humana é, no que diz respeito aos genes, quase idêntica à do chimpanzé e possui muito mais semelhanças com animais como ratos e vermes do que gostaríamos de supor.
Mas a pesquisa de Parra e Pena é especialmente interessante porque ela mostra que o que entendemos como características raciais não se relaciona necessariamente com a origem geográfica do genoma. Trocando em miúdos, nem todo negro no Brasil é geneticamente um afrodescendente, e nem todo afro-brasileiro é necessariamente negro.
Isso é possível porque nem todas as características da "negritude" ou da "brancura" são obra dos mesmos genes. Uma pessoa pode herdar de um pai "negro" o cabelo encaracolado e, ao mesmo tempo, o nariz adunco de uma mãe "branca".
Existem algumas características que estão indissociavelmente ligadas a certas regiões do globo. Trata-se de adaptações de tipo ambiental. O gene responsável pela resistência à malária, por exemplo, possui inequívoca origem africana. Esse também é o caso dos genes responsáveis pela pele escura. Em ambientes onde o sol é inclemente, como a África, a produção extra de melanina protege contra o câncer de pele, proporcionando vantagem evolutiva.
O que o trabalho de Parra e Pena faz é mostrar, com um bom nível de evidência, que as características que entendemos socialmente como "de negros" não guardam correlação estatística com a presença de genes inequivocamente africanos.
Curiosamente, nós seguimos perpetuando as "características" da "negritude" ou da "brancura" através da seleção social. Como as pessoas tendem a escolher parceiros sexuais da mesma "raça", acabam ficando com indivíduos que trazem as particularidades tidas como emblemáticas. No caso de "negros", prevaleceria a tríade pele escura, cabelo encaracolado e nariz achatado.
As evidências científicas de que a espécie humana é singular e de que não faz sentido falar em raças constituem apenas um aspecto da luta contra o racismo. O fenômeno é paradoxal: não há raças em nível genético, mas elas existem em nossas mentes, e isso basta para que ganhem concretude social, possibilitando manifestações espúrias como o racismo. Por vezes, os piores inimigos do homem são suas próprias fantasias.


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