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São Paulo, segunda-feira, 22 de dezembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A verdadeira herança maldita

MARCIO POCHMANN


Com a desculpa da racionalização de gastos, privatizam-se os serviços sociais e se transfere o restante para os pobres

No clássico livro "Formação Econômica do Brasil", Celso Furtado refere-se ao mimetismo ideológico das nossas elites do século 19. A inadequação ao padrão-ouro era encarada como vício, distorção e fraqueza. Não existiam particularidades histórico-estruturais. A análise da sociedade era substituída pela exaltação da nossa vergonha nacional.
Algo de semelhante parece acontecer com certas elites bem-pensantes de hoje. Um bom exemplo dessa postura pode ser encontrado no artigo "A herança maldita" do professor José Márcio Camargo, publicado nesta Folha no último dia 7 (pág. A3). Acometidas de uma espécie de cegueira, essas elites não enxergam que as causas da desigualdade no Brasil encontram-se na precarização do mercado de trabalho, na estrutura tributária regressiva e no caráter financeirizado da riqueza.
Os mimetistas de hoje acusam o gasto social de excessivo e mal focado, além de satisfazer supostamente os privilegiados. Chegam a dizer que o gasto com o ensino universitário público é elevado. Ora, o gasto do governo federal no ensino superior não ultrapassa o mísero 0,5% do PIB. O Chile, por exemplo, investe 2,1% do seu PIB na educação superior; a Holanda, 1,8%; a Inglaterra, 1,1%; a Itália, 1,2%; e a Finlândia, 2% (pesquisa "Desigualdade de Renda e Gastos Sociais no Brasil: Algumas Evidências para o Debate", SDTS/PMSP, novembro de 2003, no site www.traba lhosp.prefeitura.sp.gov.br).
Cabe lembrar ainda que nosso país jamais constituiu um Estado do Bem-Estar Social. Não se configurou tampouco como uma sociedade salarial, com direitos coletivos básicos para o conjunto dos ocupados. O padrão de consumo na base da pirâmide social mal permite sua subsistência. Não temos a cidadania econômica, muito menos a social.
A saúde transformou-se em bem público e universal apenas com a Constituição de 1988. Apenas um em cada dois ocupados contribui para a Previdência, enquanto a educação pública, apesar da expansão do número de matrículas nos últimos 30 anos, ainda não está suficientemente estruturada para a formação de cidadãos. A assistência social foi reforçada por dispositivos constitucionais só porque não há direitos sociais universais. O seguro-desemprego dura apenas cinco meses e ainda deixa de fora todos os que não têm experiência formal de trabalho anterior.
O Brasil possui, se muito, um conjunto de ferramentas esparsas e fragmentadas, longe do desejado e necessário sistema de proteção social de caráter universal. Mesmo assim, parte da elite parece viver fora do país. Encara as políticas sociais como "coisa de pobre", excluindo a noção de direitos e cidadania universais, em nome da falsa racionalidade mercantil.
O equívoco é propor uma segmentação ainda maior da pobreza. Com a desculpa da racionalização de gastos, privatizam-se os serviços sociais -quem pode vai ao mercado- e se transfere o restante para os pobres.
Parece fácil, já que o difícil -construir uma sociedade mais justa- requer a superação da política tributária regressiva, a estruturação regulada do mercado de trabalho e o desarme da financeirização.
Nada poderia ser mais revelador que o seguinte dado: entre 2001 e 2002, a relação entre o gasto social não-contributivo e o serviço da dívida do governo federal caiu de 86% para 74%.
O gasto social não-contributivo é todo o investimento social (em saúde, educação, aposentadorias rurais etc.) financiado pela arrecadação tributária geral, excluídas as contribuições previdenciárias. Ou seja, no último ano do governo FHC, proporcionalmente, a União reduziu o gasto social e pagou ainda mais juros para o setor financeiro. Em termos mais precisos, o gasto elevado no serviço da dívida trava a possibilidade da universalização do gasto social e inviabiliza a sustentação do crescimento econômico.
O gasto social possui impactos distributivos evidentes. Além das informações estatísticas disponíveis, basta perguntar aos aposentados rurais, aos beneficiados do seguro-desemprego e das políticas compensatórias, às crianças do ensino básico e aos atendidos pelos milhares de hospitais do SUS no Brasil como eles viveriam sem esses programas -aliás, claramente insuficientes e limitados, pois não se conseguiu ainda universalizar o acesso a eles.
O seu impacto distributivo é, entretanto, anulado pela estrutura tributária regressiva e pelo circuito da financeirização que transfere cotidianamente renda do pobre para o rico. Essa nova riqueza conforma quase uma casta social encontrada não só no setor financeiro, mas também no setor produtivo e nos grupos de altos rendimentos dos setores público e privado, que vivem do estoque de riqueza sem tributação, da transferência patrimonial via privatizações e das aplicações financeiras.
Para continuar a satisfazer os interesses dessa camada privilegiada, à qual se vincula parte da elite bem-pensante, os pobres e as classes médias despendem uma parcela cada vez maior da sua renda bruta no pagamento de impostos e juros. Essa é a nossa verdadeira herança maldita.


Marcio Pochmann, 41, economista, professor licenciado do Instituto de Economia da Unicamp, é secretário do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade da Prefeitura de São Paulo.


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