São Paulo, sábado, 22 de dezembro de 2007

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"Deus está morto. Deus continua morto"?
("A Gaia Ciência", Friedrich W. Nietzsche)

SIM

Sobre a Natividade

OSWALDO GIACOIA JUNIOR

"NÃO ERRAMOS nós, como em meio a um nada infinito?". No mesmo texto em que o louco de Nietzsche anuncia o assassinato de Deus, surge outra pergunta, mais incisiva: "Não são então essas igrejas mausoléus e criptas de Deus?", indagação que culmina no paradoxo que encerra o aforismo: "Procuro Deus, procuro Deus...".
Busca trágica, cada vez menos compreensível, na medida em que nos enredamos num humanismo autista. Obcecados em desmascarar o divino, assumimos a condição de produtores de nossa própria existência. Mas, com isso, vem à luz o elemento que, há alguns séculos, permanecia latente: a aliança entre o niilismo e o domínio absoluto da razão instrumental.
O sonho emancipatório das luzes, a altivez da crítica, a que tudo deve ser submetido, desandou na barbárie de duas guerras mundiais num único século. A mesma "ratio" calculatória, capaz de solucionar o problema da fome no mundo, condena à exclusão e à miséria mais da metade de seus habitantes. O humanismo esclarecido degenerou no Holocausto e hoje patrocina a guerra civil legal, num estado de exceção permanente.
Fica claro que esse humanismo é metafísica -e, com o esgotamento desta, perece também a dimensão do ideal e do idealismo na desertificação das utopias. É nisso que resulta a perda da transcendência. Pois transcender é determinação constitutiva do existir, de modo que, desgarrados, tornamo-nos progressivamente desumanos, infra-humanos, inumanos.
E assim nos dispomos uma vez mais a celebrar no Natal a festa máxima da cristandade. Estamos em condições de fazê-lo com boa consciência? Em que medida, para além dos hábitos de consumo, a Natividade pode ser vivida por nós como um novo começo? Como uma esperança que perpetuamente se renova? Como nos postamos hoje em relação à transcendência, aquele âmbito em que, existencialmente, se abre o horizonte do possível para uma experiência do sagrado, de Deus e dos deuses, para além de nosso delírio de onipotência?
Nosso afã humanista pôs em fuga Deus e os deuses, emudecidos, obstinadamente de costas para nós. Seu silêncio não é senão o eco de nossa mudez. Sartre cunhou o lema do humanismo contemporâneo: vivemos num plano em que existem unicamente os homens, em que a escolha humana define nossa essência e nosso futuro.
Mas não é também verdade que a Terra, totalmente esclarecida, irradia o infortúnio triunfal, pairando à beira do abismo de uma crise ecológica de dimensões cósmicas? Nietzsche, o Anticristo, nunca foi tão paradoxalmente atual -ele não cessou de gritar nos ouvidos moucos do homem moderno sua distância em relação a uma experiência efetiva de Natividade.
Impávidos, precipitamo-nos a passos de gigante na transição para o Super-Homem pós-humano, artefato da nanotecnologia do "homo faber". Incapazes de viver até o fim as possibilidades do humano na história, atrevemo-nos irrefletidamente a projetar nosso destino e futuro. Pergunto-me se, atolados no hedonismo consumista, estaríamos em condições de acolher um verdadeiro Emanuel.
No ápice de sua realização, o humanismo contemporâneo ofusca a consciência da alienação que ele próprio engendra. Como resultado, estamos nos tornando cegos e surdos para a abertura do único âmbito extático em que nos seria ainda possível uma remissão do pesadelo em que nos lançou nosso programa de emancipação.
Afinal, o sonho de dominação da natureza, com refundação racional da sociedade, se tornou apocalíptico -escatologia macabra em que nosso poder-fazer pode efetivar um extermínio talvez irreversível das condições de nossa existência. Hoje, não carecemos mais de células pluripotentes de embriões humanos para produzir concretamente o eterno retorno do mesmo. Será que teremos como prometer, responsavelmente, que uma vida humana possa nascer sobre a Terra sob a forma de futuras gerações de seres humanos?
Gostaria muito de que ainda pudéssemos fazê-lo. Pois assim poderíamos nos desejar mutuamente, de todo o coração e em seu espírito mais autêntico, um feliz e abençoado Natal.


OSWALDO GIACOIA JUNIOR, doutor em filosofia pela Universidade Livre de Berlim, é professor associado do Departamento de Filosofia da Unicamp. É autor, entre outras obras, de "Nietzsche & Para Além de Bem e Mal".

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