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"Deus está morto. Deus continua morto"?
("A Gaia Ciência", Friedrich W. Nietzsche)
SIM
Sobre a Natividade
OSWALDO GIACOIA JUNIOR
"NÃO ERRAMOS nós, como
em meio a um nada infinito?". No mesmo texto em
que o louco de Nietzsche anuncia o
assassinato de Deus, surge outra pergunta, mais incisiva: "Não são então
essas igrejas mausoléus e criptas de
Deus?", indagação que culmina no
paradoxo que encerra o aforismo:
"Procuro Deus, procuro Deus...".
Busca trágica, cada vez menos compreensível, na medida em que nos
enredamos num humanismo autista.
Obcecados em desmascarar o divino,
assumimos a condição de produtores
de nossa própria existência. Mas, com
isso, vem à luz o elemento que, há alguns séculos, permanecia latente: a
aliança entre o niilismo e o domínio
absoluto da razão instrumental.
O sonho emancipatório das luzes, a
altivez da crítica, a que tudo deve ser
submetido, desandou na barbárie de
duas guerras mundiais num único século. A mesma "ratio" calculatória,
capaz de solucionar o problema da fome no mundo, condena à exclusão e à
miséria mais da metade de seus habitantes. O humanismo esclarecido degenerou no Holocausto e hoje patrocina a guerra civil legal, num estado
de exceção permanente.
Fica claro que esse humanismo é
metafísica -e, com o esgotamento
desta, perece também a dimensão do
ideal e do idealismo na desertificação
das utopias. É nisso que resulta a perda da transcendência. Pois transcender é determinação constitutiva do
existir, de modo que, desgarrados,
tornamo-nos progressivamente desumanos, infra-humanos, inumanos.
E assim nos dispomos uma vez
mais a celebrar no Natal a festa máxima da cristandade. Estamos em condições de fazê-lo com boa consciência? Em que medida, para além dos
hábitos de consumo, a Natividade pode ser vivida por nós como um novo
começo? Como uma esperança que
perpetuamente se renova? Como nos
postamos hoje em relação à transcendência, aquele âmbito em que, existencialmente, se abre o horizonte do
possível para uma experiência do sagrado, de Deus e dos deuses, para
além de nosso delírio de onipotência?
Nosso afã humanista pôs em fuga
Deus e os deuses, emudecidos, obstinadamente de costas para nós. Seu silêncio não é senão o eco de nossa mudez. Sartre cunhou o lema do humanismo contemporâneo: vivemos num
plano em que existem unicamente os
homens, em que a escolha humana
define nossa essência e nosso futuro.
Mas não é também verdade que a
Terra, totalmente esclarecida, irradia
o infortúnio triunfal, pairando à beira
do abismo de uma crise ecológica de
dimensões cósmicas? Nietzsche, o
Anticristo, nunca foi tão paradoxalmente atual -ele não cessou de gritar
nos ouvidos moucos do homem moderno sua distância em relação a uma
experiência efetiva de Natividade.
Impávidos, precipitamo-nos a passos de gigante na transição para o Super-Homem pós-humano, artefato da
nanotecnologia do "homo faber". Incapazes de viver até o fim as possibilidades do humano na história, atrevemo-nos irrefletidamente a projetar
nosso destino e futuro. Pergunto-me
se, atolados no hedonismo consumista, estaríamos em condições de acolher um verdadeiro Emanuel.
No ápice de sua realização, o humanismo contemporâneo ofusca a consciência da alienação que ele próprio
engendra. Como resultado, estamos
nos tornando cegos e surdos para a
abertura do único âmbito extático em
que nos seria ainda possível uma remissão do pesadelo em que nos lançou nosso programa de emancipação.
Afinal, o sonho de dominação da
natureza, com refundação racional da
sociedade, se tornou apocalíptico
-escatologia macabra em que nosso
poder-fazer pode efetivar um extermínio talvez irreversível das condições de nossa existência.
Hoje, não carecemos mais de células pluripotentes de embriões humanos para produzir concretamente o
eterno retorno do mesmo. Será que
teremos como prometer, responsavelmente, que uma vida humana possa nascer sobre a Terra sob a forma de
futuras gerações de seres humanos?
Gostaria muito de que ainda pudéssemos fazê-lo. Pois assim poderíamos
nos desejar mutuamente, de todo o
coração e em seu espírito mais autêntico, um feliz e abençoado Natal.
OSWALDO GIACOIA JUNIOR, doutor em filosofia pela
Universidade Livre de Berlim, é professor associado do
Departamento de Filosofia da Unicamp. É autor, entre outras obras, de "Nietzsche & Para Além de Bem e Mal".
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