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TENDÊNCIAS/DEBATES
Viva o povo latino-americano!
EMIR SADER
O povo da América Latina reconquista um espaço de luta e desenha um futuro para o continente que tenha a sua cara
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O povo da América Latina e do Caribe foi vítima, nas quatro últimas
décadas, de duas violentas ofensivas
contra seus direitos, sua identidade e
sua própria existência como povo.
A primeira foi a das ditaduras militares, concentradas mais ao Sul do continente, mas com distintas expressões em
outras regiões da América Latina e do
Caribe. A segunda foi a dos governos
neoliberais -que se estenderam por
praticamente todo o continente-,
ofensiva não menos violenta e destrutiva que a primeira.
No entanto, demonstrando extraordinária capacidade de resistência, o povo
latino-americano e caribenho vai conseguindo contornar essas duas ofensivas e volta a abrir espaços próprios para
reafirmar seus interesses, sua identidade e seu direito a decidir o seu próprio
destino.
A ofensiva das ditaduras militares se
iniciou na Bolívia e no Brasil em 1964, se
prolongou no Chile e no Uruguai, em
1973, até chegar à Argentina, em 1976.
Foi protagonizada, principalmente, por
militares -Castello Branco, Costa e Silva, Garrastazu Médici, Ernesto Geisel,
João Figueiredo, René Barrientos, Hugo
Banzer, Augusto Pinochet, Juan María
Bordaberry, Rafael Videla e Alfredo
Stroessner, entre outros-, apoiados
pelos seus maiores beneficiários -os
monopólios privados, nacionais e internacionais, do dinheiro, da terra e da mídia. Buscou destruir os movimentos populares, a esquerda e qualquer vestígio
das conquistas democráticas conseguidas por eles.
A segunda, baseada nos efeitos destrutivos das ditaduras militares, tratou
de estender as relações mercantis a todos os espaços sociais, econômicos, políticos e culturais do continente, submetendo tudo à voracidade do grande capital, mais especialmente do capital especulativo. Entre seus principais protagonistas estão Augusto Pinochet, Víctor
Paz Estensoro, Sanchez de Losada, Carlos Menem, Carlos Salinas de Gortari,
Fernando Henrique Cardoso, Alberto
Fujimori, Carlos Andrés Perez.
No entanto, o povo latino-americano,
desde a rebelião de Chiapas, em 1994,
passando pelas marchas do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra), pelas mobilizações indígenas e
camponesas no Equador, na Bolívia, pelos piqueteiros, na Argentina -entre
tantas outras expressões da sua capacidade de luta-, está sabendo superar essas ofensivas e seus efeitos mais perversos. Derrotou recentemente os principais protagonistas do neoliberalismo
-Menem, Fujimori, FHC, Carlos Andrés Perez, Sanchez de Losada e o PRI,
entre outros- e elegeu governos que
prometiam superá-lo.
Exemplo mais recente é a eleição de
Evo Morales, o primeiro líder indígena
a dirigir um país em que 70% da população se reconhecem como indígena,
mas que havia até aqui sido sempre dirigido por brancos ricos.
Apesar da violenta hostilidade dos
monopólios privados da mídia -típicos no continente-, que publicou 79%
de matérias contra Evo Morales e 1%
(sic) a favor durante a campanha, o candidato da esquerda boliviana triunfou e
já revelou que suas orientações fundamentais vão na direção de aprofundar e
estender o processo de integração latino-americana, razão pela qual suas primeiras viagens no continente foram a
Cuba, Venezuela, Brasil e Argentina
-alguns dos principais protagonistas
desse processo de integração.
Vislumbra-se chance real de vitórias
da esquerda nas eleições do Peru e do
México, acentuando o isolamento da
política de Bush para o continente e gerando as melhores condições históricas
que a América Latina e o Caribe conseguiram até hoje para promover sua
emancipação como continente, graças
às lutas do seu povo.
O povo latino-americano e caribenho
reconquista um espaço próprio de luta e
desenha um futuro para o continente
que tenha sua cara, sua identidade e
seus interesses, contra o capital especulativo, as grandes corporações multinacionais e a hegemonia imperial.
O Brasil contribuiu concretamente
para essa situação, mediante a obstrução ao funcionamento da Alca (Área de
Livre Comércio das Américas), a contribuição ao fortalecimento e expansão do
Mercosul e a constituição do Grupo dos
20, entre outras iniciativas.
Porém, o não cumprimento da prioridade pelo social -somente possível se
o governo tivesse rompido com a política econômica herdada de Fernando Henrique Cardoso, em vez de mantê-la-
e as conseqüências da mentalidade
mercantil implícitas nessa política, presentes nas denúncias das CPIs, levam ao
risco iminente de que essas contribuições do Brasil se revertam, permitindo,
ao contrário, o retorno da subserviência
aos Estados Unidos, típica do bloco tucano-pefelista.
A responsabilidade central em barrar
essa ameaça recai sobre o governo Lula.
Ou ele muda sua política econômica, reconquista a confiança da militância de
esquerda, dos movimentos sociais e da
cidadania em geral -fazendo com que
o Brasil possa contribuir, agora em condições muito mais favoráveis, às lutas
do povo latino-americano-, ou, ao
contrário, terá sido derrotado, propiciando o retorno da direita e das políticas favoráveis ao expansionismo bélico
dos Estados Unidos.
A decisão nos colocará ao lado do povo latino-americano, ou contra ele. Até
aqui, o Brasil foi protagonista essencial
desse processo. Neste ano se decide qual
o lugar do nosso país nas lutas do povo
latino-americano e caribenho: somado
a elas ou como um representante do império, contraposto a essas lutas.
Emir Sader, 62, é professor de sociologia da USP
e da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), onde coordena o Laboratório de Políticas Públicas. É autor de "A Vingança da História" (Boitempo), entre outras obras.
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