São Paulo, segunda-feira, 23 de janeiro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Viva o povo latino-americano!

EMIR SADER


O povo da América Latina reconquista um espaço de luta e desenha um futuro para o continente que tenha a sua cara

O povo da América Latina e do Caribe foi vítima, nas quatro últimas décadas, de duas violentas ofensivas contra seus direitos, sua identidade e sua própria existência como povo.
A primeira foi a das ditaduras militares, concentradas mais ao Sul do continente, mas com distintas expressões em outras regiões da América Latina e do Caribe. A segunda foi a dos governos neoliberais -que se estenderam por praticamente todo o continente-, ofensiva não menos violenta e destrutiva que a primeira.
No entanto, demonstrando extraordinária capacidade de resistência, o povo latino-americano e caribenho vai conseguindo contornar essas duas ofensivas e volta a abrir espaços próprios para reafirmar seus interesses, sua identidade e seu direito a decidir o seu próprio destino.
A ofensiva das ditaduras militares se iniciou na Bolívia e no Brasil em 1964, se prolongou no Chile e no Uruguai, em 1973, até chegar à Argentina, em 1976. Foi protagonizada, principalmente, por militares -Castello Branco, Costa e Silva, Garrastazu Médici, Ernesto Geisel, João Figueiredo, René Barrientos, Hugo Banzer, Augusto Pinochet, Juan María Bordaberry, Rafael Videla e Alfredo Stroessner, entre outros-, apoiados pelos seus maiores beneficiários -os monopólios privados, nacionais e internacionais, do dinheiro, da terra e da mídia. Buscou destruir os movimentos populares, a esquerda e qualquer vestígio das conquistas democráticas conseguidas por eles.
A segunda, baseada nos efeitos destrutivos das ditaduras militares, tratou de estender as relações mercantis a todos os espaços sociais, econômicos, políticos e culturais do continente, submetendo tudo à voracidade do grande capital, mais especialmente do capital especulativo. Entre seus principais protagonistas estão Augusto Pinochet, Víctor Paz Estensoro, Sanchez de Losada, Carlos Menem, Carlos Salinas de Gortari, Fernando Henrique Cardoso, Alberto Fujimori, Carlos Andrés Perez.
No entanto, o povo latino-americano, desde a rebelião de Chiapas, em 1994, passando pelas marchas do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), pelas mobilizações indígenas e camponesas no Equador, na Bolívia, pelos piqueteiros, na Argentina -entre tantas outras expressões da sua capacidade de luta-, está sabendo superar essas ofensivas e seus efeitos mais perversos. Derrotou recentemente os principais protagonistas do neoliberalismo -Menem, Fujimori, FHC, Carlos Andrés Perez, Sanchez de Losada e o PRI, entre outros- e elegeu governos que prometiam superá-lo.
Exemplo mais recente é a eleição de Evo Morales, o primeiro líder indígena a dirigir um país em que 70% da população se reconhecem como indígena, mas que havia até aqui sido sempre dirigido por brancos ricos.
Apesar da violenta hostilidade dos monopólios privados da mídia -típicos no continente-, que publicou 79% de matérias contra Evo Morales e 1% (sic) a favor durante a campanha, o candidato da esquerda boliviana triunfou e já revelou que suas orientações fundamentais vão na direção de aprofundar e estender o processo de integração latino-americana, razão pela qual suas primeiras viagens no continente foram a Cuba, Venezuela, Brasil e Argentina -alguns dos principais protagonistas desse processo de integração.
Vislumbra-se chance real de vitórias da esquerda nas eleições do Peru e do México, acentuando o isolamento da política de Bush para o continente e gerando as melhores condições históricas que a América Latina e o Caribe conseguiram até hoje para promover sua emancipação como continente, graças às lutas do seu povo.
O povo latino-americano e caribenho reconquista um espaço próprio de luta e desenha um futuro para o continente que tenha sua cara, sua identidade e seus interesses, contra o capital especulativo, as grandes corporações multinacionais e a hegemonia imperial.
O Brasil contribuiu concretamente para essa situação, mediante a obstrução ao funcionamento da Alca (Área de Livre Comércio das Américas), a contribuição ao fortalecimento e expansão do Mercosul e a constituição do Grupo dos 20, entre outras iniciativas.
Porém, o não cumprimento da prioridade pelo social -somente possível se o governo tivesse rompido com a política econômica herdada de Fernando Henrique Cardoso, em vez de mantê-la- e as conseqüências da mentalidade mercantil implícitas nessa política, presentes nas denúncias das CPIs, levam ao risco iminente de que essas contribuições do Brasil se revertam, permitindo, ao contrário, o retorno da subserviência aos Estados Unidos, típica do bloco tucano-pefelista.
A responsabilidade central em barrar essa ameaça recai sobre o governo Lula. Ou ele muda sua política econômica, reconquista a confiança da militância de esquerda, dos movimentos sociais e da cidadania em geral -fazendo com que o Brasil possa contribuir, agora em condições muito mais favoráveis, às lutas do povo latino-americano-, ou, ao contrário, terá sido derrotado, propiciando o retorno da direita e das políticas favoráveis ao expansionismo bélico dos Estados Unidos.
A decisão nos colocará ao lado do povo latino-americano, ou contra ele. Até aqui, o Brasil foi protagonista essencial desse processo. Neste ano se decide qual o lugar do nosso país nas lutas do povo latino-americano e caribenho: somado a elas ou como um representante do império, contraposto a essas lutas.


Emir Sader, 62, é professor de sociologia da USP e da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), onde coordena o Laboratório de Políticas Públicas. É autor de "A Vingança da História" (Boitempo), entre outras obras.


Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Marcus Vinicius Pratini de Moraes: Até 2013

Próximo Texto: Painel do leitor
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.