|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Confissões
JOÃO ESTRELLA
Alguém tem alguma dúvida de que os jovens não estão nem aí para essa culpa? Eu negociei com muita gente de elite. É pura festa.
OI! POSSO me sentar? Desculpem-me, mas não pude deixar
de ouvir a conversa... É que esse assunto muito me interessa.
Como vocês sabem, negociei cocaína no Brasil e no exterior por seis
anos, entre 1989 e 1995. Nesse período, consumi quantidades industriais
de drogas -LSD, haxixe, cocaína, ecstasy, álcool, cigarros, cogumelos, maconha etc. Hoje, posso dizer com
tranqüilidade que estou fora de tudo
isso. Mas não foi fácil.
Fui preso em 1995. Fiquei quatro
meses na Polícia Federal da praça
Mauá, no Rio de Janeiro, até sair o resultado do meu julgamento. Na sentença, a juíza me condenou a dois
anos de internação em um manicômio judiciário no complexo Frei Caneca, também no Rio.
As pessoas que lá nunca estiveram
dizem que foi mole, que a sentença foi
baixa etc. Mas não é assim. Basta
olhar o nosso sistema prisional -há
exemplos trágicos muito recentes-
para entender que, no Brasil, nem
mesmo um único dia na prisão é "mole". Aquela é uma realidade sobre a
qual ninguém pode falar de fora.
Fui condenado a quatro anos de
prisão. Se fosse cumprir essa sentença, poderia sair em um ano e meio
com bom comportamento. A juíza
substituiu a pena para dois anos no
manicômio. Lá, você tem que se recuperar, porque, se não tiver uma série
de pareceres positivos, a sua pena é
renovada tantas vezes quantas o juiz
achar conveniente.
São duas situações diferentes, na
PF e no manicômio. Naquela, a vida
com pessoas em constante crise de
abstinência e com problemas de espaço e convivência. Neste, o convívio
com pessoas que tinham graves problemas psicológicos e eram, em alguns casos, bastante violentas.
Na primeira situação, em que não
entravam drogas, as pancadarias
eram constantes entre os presos e era
quase impossível não se envolver.
No manicômio, por sua vez, tive o
"privilégio" de conviver na mesma cela com pessoas que haviam matado
seus pais, assassinado o próprio filho
com pauladas e até com psicopatas famosos, como um que matava crianças
-foram 14- e comia seus órgãos depois que elas estavam mortas.
Além da violência, algo que me impressionou foi que, pelo menos na
época, o segredo de Justiça para quem
fizesse denúncias -tipo delação premiada- não passava de promessa vazia. Na PF, fui colocado na cela de
uma facção por (ainda bem!) não ter
denunciado ninguém. Uma pessoa
que tinha feito denúncias acabou sendo espancada -o depoimento do cara
foi entregue na íntegra a mim e às
pessoas que estavam na cela comigo.
É, meu amigo, só quem não sabe nada da prisão é que pode dizer que minha sentença foi "mole". E só quem
não sabe nada de criminalidade pode
achar que apontar a classe média consumidora de drogas como responsável pela violência nos centros urbanos
vai ajudar em alguma coisa.
Sei que "Tropa de Elite" ajudou a levantar essa questão; mas, segundo
consta, foi de forma não intencional.
Será que alguém tem alguma dúvida de que os jovens não estão nem aí
para essa culpa? Alguém tem a ilusão
de que o consumidor de drogas possa
estar preocupado se está ou não alimentando a violência? Eu negociei
com muita gente de elite. É pura festa,
meu amigo. Pura festa.
Sabe, é fácil encontrar culpados,
mas nós precisamos é de soluções. Se
é para falar de culpa, bem, a sociedade
como um todo tem responsabilidade
por quem elege para administrar o dinheiro dos nossos impostos.
Mas não é só neguinho da elite que
não tá nem aí. O jovem pobre e criminoso também não está preocupado
com isso -e tem lá os seus motivos.
Ele faz parte de uma parcela da população que, além de ser massacrada pela miséria, ainda é esculachada pela
polícia, enganada por políticos e jogada na marginalidade mesmo quando
não é bandida, pois marginal é aquele
que não participa da comunidade,
aquele que é excluído. Esses cidadãos,
que são os mais combatidos e que não
têm direito a cela especial, são mais
vítimas do que culpados.
Sinceramente? A cocaína e o ecstasy são problemas, sim, mas não são
os mais graves que temos neste país.
Aliás, por falar em drogas, quer tomar um "drink"? Então... Temos o álcool, que, se não me engano, aparece
em primeiro lugar na lista de destruição: homicídios, acidentes automobilísticos fatais, demolição familiar, violência doméstica... A cocaína aparece
em quinto ou sexto lugar na lista de
ocorrências com morte.
Temos ainda a fome, a falta d'água,
a falta de terra, a falta de vergonha na
cara dessa corja que depena o país. A
bem da verdade, quem dera nossos
maiores problemas fossem os ecstasys que a rapaziada toma nas festas
e que estão na mídia o tempo todo.
JOÃO GUILHERME ESTRELLA, 46, é cantor, compositor e
produtor. Em sua história real foram baseados o livro e o
filme "Meu Nome Não É Johnny".
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Oded Grajew: Observatório para nossa São Paulo Próximo Texto: Painel do Leitor Índice
|