São Paulo, terça-feira, 23 de março de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Alforria moderna

JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI

O presidente da República enviou ao Congresso Nacional a medida provisória 148/03, cuja finalidade é levar aos 22 milhões de usuários de planos de saúde adquiridos antes de 1999 os "benefícios" da lei 9.656, que os regulamenta, dando ampla liberdade à Agência Nacional de Saúde Suplementar de normatizá-la, o que foi feito por meio de duas resoluções (RNs 63 e 64), sete dias após a sua publicação e estranhamente antes de o Congresso discutir e aprovar a referida MP -o que não é, diga-se, uma atitude republicana.
Por isso, ao avaliá-la, como relator, não fiz apenas ilações, mas pude ver concretamente os graves problemas que cercam a questão. A normatização determina aos migrantes aumentos de 15% a 25% nas mensalidades, e algumas vezes mais, além de obrigá-los a cumprir acréscimo de 500% até 59 anos de idade, praticados em dobro nas três últimas faixas. Esses aumentos não existiam em alguns planos e em outros cresciam mais lentamente, chegando ao máximo só aos 71 anos. O Estatuto do Idoso, paradoxalmente, foi usado pelo governo para antecipá-los para 59 anos, sem redução da taxa leonina de 500%.


Perdeu-se um momento mágico para a solução rápida e justa de problemas graves


Tomemos o exemplo de um senhor, cujo salário é R$ 5.000, possuidor de plano de saúde coletivo, da empresa onde trabalha, que custa R$ 300 por mês, dos quais ele paga um terço, R$ 100. Ao atingir 59 anos, ele estará pagando cinco vezes mais (R$ 600) e a empresa, os restantes R$ 1.200. Ao se aposentar, ele arcará com todo o custo de R$ 1.800, sendo que de aposentadoria receberá o teto, ou seja, R$ 2.400. Obviamente será obrigado a abandonar o plano no momento em que mais precisará dele.
O governo, dessa forma, proporcionou às operadoras seu ideal de lucro: muitos jovens que pagam e não usam e os sexagenários, que seguramente os vão usar, serão expulsos por inadimplência. Boa semelhança com a alforria "generosa" dos escravos sexagenários, que davam mais despesa que lucro.
As coisas não param por aí. Os migrantes terão de cumprir novas carências e encontrarão os prestadores de serviço à beira de um colapso financeiro, pois os médicos, segundo a Associação Médica Brasileira, não recebem aumento das operadoras há seis anos e, nesse período, os planos aumentaram 158% para os usuários. Esses profissionais têm sido pressionados a solicitar menos exames e tratamentos, sob pena de perderem seus credenciamentos. Fatos semelhantes ocorrem com os hospitais prestadores, prejudicando o salário dos demais trabalhadores de saúde e a renovação e manutenção dos equipamentos hospitalares.
A MP 148 era uma excelente oportunidade de encaminhar correções imediatas para esses e outros problemas graves que já tinham sido levantados e discutidos pela CPI dos Planos de Saúde. Por isso me senti na obrigação de modificá-la em algumas questões essenciais: reduzindo de 500% para 300% o aumento por faixas etárias; excluindo carências na migração; corrigindo o atendimento de emergência -limitado absurdamente a 12 horas, como se fosse possível cronometrá-lo- para um critério clínico adequado; substituindo o cheque-caução por plantão contínuo das operadoras; aquinhoando médicos, trabalhadores de saúde e hospitais prestadores com parte dos aumentos praticados pelas operadoras; determinando a revisão dos critérios de contratualização de profissionais da saúde e hospitais, para evitar descredenciamentos injustos e lesivos ao usuário; garantindo no mínimo o pagamento em dia dos serviços prestados e colocando fundo o dedo nessa chaga fraudulenta do ressarcimento, que é feito precariamente, contrariando a lei 9.656 e permitindo que as operadoras aumentem seus lucros, parasitando e lesando o sistema e o erário público.
Durante dois meses, com apoio total do meu partido, o PFL, dialoguei com sociedade civil, Congresso e governo, aceitando sugestões, modificando proposições e deixando clara nossa posição de compatibilizar lucros moderados das operadoras com boas condições de trabalho para os prestadores e seriedade e competência para os usuários. Chegado o dia da votação da MP, com as modificações referidas, a liderança do governo encaminhou a medida contrariamente, apesar do diálogo anterior e da obviedade da matéria. Os partidos da base do governo se dividiram, mas acabamos perdendo por margem pequena na votação nominal. Uma pena!
O governo promete agora mandar um projeto de lei em três meses para abordar essas questões, omitindo que ele tramitará seguramente durante anos no Congresso, permitindo que as distorções apontadas se consolidem como prática imutável. Perdeu-se um momento mágico para a solução rápida e justa de problemas graves.
É preciso, nessas circunstâncias, que os usuários de planos de saúde fiquem de olho, analisem cada proposta de migração e, se possível, não migrem antes de serem corrigidas essas distorções gravíssimas, lembrando sempre que estão protegidos por um contrato jurídico perfeito, pelo Código do Consumidor, por órgãos como Procon e Idec, e que a Justiça tem lhes dado ganho de causa quando os princípios da lei 9.656 não são cumpridos.
Inúmeras entidades, como AMB, Conselho Federal de Medicina e Sindhosp, estão se mobilizando para, junto com Procon, Idec e sociedade civil, continuarem nessa luta. Estarei também em todas as trincheiras disponíveis.

José Aristodemo Pinotti, 69, deputado federal pelo PFL-SP, é professor titular de ginecologia da USP. Foi secretário da Educação (1986-87) e da Saúde (1987-91) do Estado de São Paulo, secretário da Saúde do município de São Paulo (2000) e reitor da Unicamp (1982-1986).


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