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Rosa e Bial
ARIANO SUASSUNA
Uma vez ouvi o grande Alceu Amoroso Lima dizer: "Do Nordeste para
Minas corre um eixo que, não por acaso, segue o curso do São Francisco, o
rio da unidade nacional. A esse eixo o
Brasil tem que voltar de vez em quando se não quiser se esquecer de que é
Brasil".
A frase ganha um peso ainda maior
porque Alceu Amoroso Lima foi um
grande brasileiro nascido e criado no
Rio, e não em Minas ou no Nordeste.
Mas nós, mineiros e nordestinos, temos o dever de lembrar que o eixo se
prolonga para o Norte e para o Sul: São
Paulo (o São Paulo verdadeiro e profundo) não é contrário a Goiás, ao
Nordeste, à Amazônia, a Minas ou ao
Rio Grande.
Somos, todos, integrantes do imenso
arquipélago que é o Brasil e que, caso
ainda seja possível deter o desastroso
processo a que vem sendo submetido,
continuará podendo repetir as palavras daquele outro grande brasileiro
que foi Monteiro Lobato: "Nada de
imitar seja lá quem for. Temos de ser
nós mesmos. Ser núcleo de cometa,
não cauda. Puxar fila, não seguir".
Vejo-me, agora, diante de duas obras
de arte que, apesar do extravio terrível
para o qual os políticos, empresários e
economistas ora no poder estão empurrando o Brasil, provam que a frase
de Alceu Amoroso Lima, como a de
Lobato, continua a ter validade (não
sei por quanto tempo): o documentário "Urucuia", de Angélica Del Nery,
e o filme "Outras Estórias", de Pedro
Bial, criado a partir de contos do grande João Guimarães Rosa.
O documentário de Angélica Del
Nery (que é paulista), ao exibir os grupos que tocam viola e rabeca junto ao
rio de Riobaldo, mostra como, no Brasil real, ainda permanece forte a arte
popular. O filme de Bial (que é carioca)
revela como é importante para o Brasil
a obra dos artistas eruditos que se ligam ao popular, vertente recriada, neles, por uma arte refinada e poderosa
que os torna universais.
Em seus contrastes, o Brasil é um
país barroco, e barrocos são alguns de
seus maiores artistas. O que não é verdade somente a respeito do Aleijadinho, de José Maurício ou de Matias Aires. É verdade, também, de outros
mais recentes, como Euclides da Cunha, Villa-Lobos ou Guimarães Rosa.
Nos barrocos é frequente a visão do
mundo como um grande teatro e da
vida como a encenação de uma viagem, empreendida numa "carruagem
de cegos" ou numa "nave de loucos".
E o filme de Bial, aliás com algumas
cenas pontuadas pela bela música de
Villa-Lobos, mostra como o universo
rosiano abarca e aprofunda a visão
barroca, com os grandes temas da vida, do amor, da cegueira, da loucura,
da injustiça, da brutalidade, da inocência, da culpa e da morte.
Todos nós que amamos a obra do
grande escritor mineiro sabemos que
não é fácil recriar, no teatro ou no cinema, uma linguagem que, apesar de
fundamentada na oralidade popular,
foi escrita essencialmente para ser lida.
O diretor e os atores de "Outras Estórias" enfrentaram a tarefa com coragem e dignidade. De modo que, no final, quando todos os personagens caminham, salmodiando, pela estrada
-como se tivessem assumido a insânia do cego e das "transtornadas"-,
percebemos que, como no verso de
Camões sobre a máquina do mundo,
foi "um trasunto resumido da vida e
do universo" que Rosa e Bial nos
apresentaram.
E para nós (preocupados com os caminhos para onde estão empurrando o
Brasil) é grande alento ver um artista
jovem como Pedro Bial afirmar, no
discurso em que apresentou o filme,
que não esmorece "diante desta aventura, grande demais, de erguer uma
nação; um Brasil épico, profundo e mítico", recriado a partir do país presente, "desgraçadamente belo, trágico e
enigmático".
Ariano Suassuna escreve às terças-feiras nesta coluna.
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