São Paulo, terça, 23 de março de 1999
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Rosa e Bial

ARIANO SUASSUNA

Uma vez ouvi o grande Alceu Amoroso Lima dizer: "Do Nordeste para Minas corre um eixo que, não por acaso, segue o curso do São Francisco, o rio da unidade nacional. A esse eixo o Brasil tem que voltar de vez em quando se não quiser se esquecer de que é Brasil".
A frase ganha um peso ainda maior porque Alceu Amoroso Lima foi um grande brasileiro nascido e criado no Rio, e não em Minas ou no Nordeste. Mas nós, mineiros e nordestinos, temos o dever de lembrar que o eixo se prolonga para o Norte e para o Sul: São Paulo (o São Paulo verdadeiro e profundo) não é contrário a Goiás, ao Nordeste, à Amazônia, a Minas ou ao Rio Grande.
Somos, todos, integrantes do imenso arquipélago que é o Brasil e que, caso ainda seja possível deter o desastroso processo a que vem sendo submetido, continuará podendo repetir as palavras daquele outro grande brasileiro que foi Monteiro Lobato: "Nada de imitar seja lá quem for. Temos de ser nós mesmos. Ser núcleo de cometa, não cauda. Puxar fila, não seguir".
Vejo-me, agora, diante de duas obras de arte que, apesar do extravio terrível para o qual os políticos, empresários e economistas ora no poder estão empurrando o Brasil, provam que a frase de Alceu Amoroso Lima, como a de Lobato, continua a ter validade (não sei por quanto tempo): o documentário "Urucuia", de Angélica Del Nery, e o filme "Outras Estórias", de Pedro Bial, criado a partir de contos do grande João Guimarães Rosa.
O documentário de Angélica Del Nery (que é paulista), ao exibir os grupos que tocam viola e rabeca junto ao rio de Riobaldo, mostra como, no Brasil real, ainda permanece forte a arte popular. O filme de Bial (que é carioca) revela como é importante para o Brasil a obra dos artistas eruditos que se ligam ao popular, vertente recriada, neles, por uma arte refinada e poderosa que os torna universais.
Em seus contrastes, o Brasil é um país barroco, e barrocos são alguns de seus maiores artistas. O que não é verdade somente a respeito do Aleijadinho, de José Maurício ou de Matias Aires. É verdade, também, de outros mais recentes, como Euclides da Cunha, Villa-Lobos ou Guimarães Rosa.
Nos barrocos é frequente a visão do mundo como um grande teatro e da vida como a encenação de uma viagem, empreendida numa "carruagem de cegos" ou numa "nave de loucos". E o filme de Bial, aliás com algumas cenas pontuadas pela bela música de Villa-Lobos, mostra como o universo rosiano abarca e aprofunda a visão barroca, com os grandes temas da vida, do amor, da cegueira, da loucura, da injustiça, da brutalidade, da inocência, da culpa e da morte.
Todos nós que amamos a obra do grande escritor mineiro sabemos que não é fácil recriar, no teatro ou no cinema, uma linguagem que, apesar de fundamentada na oralidade popular, foi escrita essencialmente para ser lida. O diretor e os atores de "Outras Estórias" enfrentaram a tarefa com coragem e dignidade. De modo que, no final, quando todos os personagens caminham, salmodiando, pela estrada -como se tivessem assumido a insânia do cego e das "transtornadas"-, percebemos que, como no verso de Camões sobre a máquina do mundo, foi "um trasunto resumido da vida e do universo" que Rosa e Bial nos apresentaram.
E para nós (preocupados com os caminhos para onde estão empurrando o Brasil) é grande alento ver um artista jovem como Pedro Bial afirmar, no discurso em que apresentou o filme, que não esmorece "diante desta aventura, grande demais, de erguer uma nação; um Brasil épico, profundo e mítico", recriado a partir do país presente, "desgraçadamente belo, trágico e enigmático".


Ariano Suassuna escreve às terças-feiras nesta coluna.


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