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São Paulo, quarta-feira, 23 de abril de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

No combate à fome de livro

OSWALDO SICILIANO

O Dia Mundial do Livro e do Direito do Autor, que se comemora hoje, é uma excelente oportunidade para refletirmos a respeito de uma das principais mazelas nacionais: a marginalização do livro em nossa sociedade. É desalentador observar que, em pleno terceiro milênio, o status do livro no Brasil continua calcado em paradigmas culturais e econômicos que, guardadas as devidas proporções, remontam a séculos passados, quando era visto como um bem restrito a uma nata alfabetizada e de vastas posses.
Embora tenham se registrado de lá para cá sensíveis melhorias no poder aquisitivo da população e o decréscimo do analfabetismo, os lares brasileiros ainda são pouco receptivos ao livro. Segundo a pesquisa "Retrato da Leitura no Brasil", realizada em 2001 pela Câmara Brasileira do Livro e outras entidades do setor, das 26 milhões de pessoas acima de 14 anos que dizem ter o hábito de ler, 47% têm, no máximo, dez exemplares em casa. Pior: a compra per capita anual de livros não-didáticos por adulto alfabetizado é de 0,66%.
O estudo mostra ainda que 61% dos brasileiros adultos alfabetizados têm muito pouco ou nenhum contato com livros. Isso é decorrência de um sistema viciado de causa e efeito que só será desativado quando houver uma conjugação de esforços de toda a cadeia produtiva e das entidades governamentais.
Os problemas podem ser classificados em três categorias: culturais, econômicos e estruturais. O primeiro entrave envolve a questão cultural. Nossa tradição escrita não é tão pujante quanto a oral ou a iconográfica. Diferentemente de ver televisão ou ir ao cinema, o ato de ler é percebido mais como uma obrigação do que como fonte de prazer, sendo que apenas um terço da população adulta alfabetizada se entrega ao livro por espontânea vontade.
A falta de estímulo à leitura na formação inicial do indivíduo (momento ideal para despertar o gosto) faz com que o interesse pelo assunto atinja só uma pequena faixa da população. O mercado diminuto obriga as editoras a produzirem baixas tiragens, que, por sua vez, acarretam um custo unitário alto. Entra em cena, então, o problema econômico. O preço do livro afasta uma grossa fatia de leitores de menor poder aquisitivo. Segundo o "Retrato da Leitura no Brasil", 6,5 milhões de pessoas das camadas mais pobres da população disseram não ter condições de adquirir livros, sendo que, de cada dez não-leitores, sete têm baixo poder aquisitivo. Isso é corroborado quando se detecta que 73% dos livros estão concentrados nas mãos de apenas 16% da população. Em São Paulo, as classes A, B e C correspondem a 95% do mercado editorial.


Apenas um terço da população adulta alfabetizada se entrega ao livro por espontânea vontade


A falta de clientes vai gerar reflexos nos problemas estruturais do setor livreiro. Existem hoje no Brasil aproximadamente 700 livrarias (na acepção clássica do termo, não incluindo outros pontos-de-venda, como supermercados, papelarias, bancas de jornal), quando o ideal, para atender um país de dimensões continentais como o nosso, seria algo em torno de 10 mil.
Diante de tal quadro, abrir livrarias, principalmente fora do eixo Sudeste-Sul, é quase um ato de heroísmo. Mas isso tende a mudar. Percebe-se no governo federal e na população uma vontade muito grande de combater a fome de livros e reescrever esse capítulo de nossa história com um final feliz.
O Ministério da Educação já realiza um importante trabalho com o Programa Nacional do Livro Didático. Desde que foi implantado, o projeto vem democratizando, sistematicamente, o acesso à leitura e erradicando o analfabetismo. A reativação do Instituto Nacional do Livro, rebatizado de Instituto Nacional do Livro e da Leitura, também é um ato louvável para a elevação da imagem do livro a patamares compatíveis com sua importância cultural, social e econômica.
O governo goza também de muitos instrumentos para fomentar a indústria editorial e incrementar a circulação de livros não-didáticos no Brasil. Suas ações podem se concretizar na área tributária e fiscal, incentivando cada vez mais a produção e a distribuição.
A concessão, por parte do BNDES, de uma linha de crédito especial para empresários interessados em abrir livrarias no interior do país seria uma medida extremamente oportuna. Com o redesenho do mapa de pontos-de-venda, abrangendo áreas não desbravadas do interior brasileiro, a expectativa é que ocorra o aumento da tiragem média por obra e, consequentemente, o rateamento do custo e o barateamento do livro.
Entre outras medidas para vencer o desafio da carência do livro, o poder público poderia ampliar o número de bibliotecas com um acervo mínimo de novos lançamentos, o que aumentaria a tiragem dos livros, com a consequente redução de seu custo unitário nas livrarias, e ampliaria o acesso da população aos mesmos.
Por fim, é preciso um esforço em conjunto dos órgãos governamentais, entidades do setor, meios de comunicação, professores, literatos e adeptos da leitura em geral para disseminar o conceito de que o livro deve ser visto primeiramente e antes de tudo como uma opção de lazer. Essa é a feliz realidade em todos os países em que se lê muito.

Oswaldo Siciliano, 71, livreiro e editor, é presidente da Câmara Brasileira do Livro.


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