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Basta de bingos
A Operação Furacão tem impacto positivo numa sociedade acostumada a conviver com o descrédito das leis
"CONTRAVENÇÃO" é
uma daquelas palavras de uso corrente no Brasil cuja dimensão sociológica dificilmente poderia ser explicada a
um observador estrangeiro. Corresponde ao que não é lícito, mas
funciona mesmo assim; que deveria ser clandestino, mas é visível em toda esquina; que deveria
ocultar-se, mas se ostenta orgulhosamente em praça pública.
Seria então, pode perguntar o
hipotético observador, algo semelhante a assaltos, arrastões,
fuzilamentos? Pois em toda
grande cidade brasileira os crimes mais bárbaros e chocantes
acontecem à luz do dia.
Tentaríamos explicar que não
é bem a mesma coisa. Ou melhor:
é e não é. A "contravenção", no
sentido que os brasileiros lhe
atribuem, é a ilegalidade em traje
de gala, em luxo feérico, em desfile de Carnaval. O bicheiro não é
o traficante, o rei do camelódromo não é o contrabandista, o dono do bingo não é o mafioso internacional, o delegado não pertence ao esquadrão da morte, o
político não é o ladrão.
Não mesmo? A esta altura, o
interlocutor estrangeiro provavelmente estaria perplexo. Não
menos do que nós, aliás -já impotentes para esclarecer uma
distinção que aos poucos se consome num pesadelo bizantino.
O fenomenal crescimento dos
bingos e caça-níqueis no Brasil
exigiria, para ser entendido em
seu pormenor jurídico, a sutileza
proverbial das gerações de sábios
que se perderam, ao longo de séculos, nas indecidíveis controvérsias teológicas que fizeram a
fama e a ruína de Bizâncio.
O jogo foi proibido em todo o
território nacional no ano de
1941. O jogo do bicho, entretanto,
sobreviveu e prosperou magnificamente desde então. O Estado
que proíbe cassinos e tolera o jogo do bicho promove, inventa e
propagandeia todo tipo de loterias. Duas leis, em 1993 e 1998,
autorizaram o funcionamento
de bingos, a pretexto -no Brasil,
as coisas são assim- de incentivar o esporte e a atividade física.
Para que não restassem dúvidas
quanto ao seu propósito, esses
diplomas legais ganharam o nome de dois craques do futebol.
No ano de 2000, a Lei Zico e a
Lei Pelé tiveram revogadas suas
disposições relativas à jogatina;
como se não bastasse, o bingo foi
proibido novamente em 2004,
numa estrepitosa medida provisória destinada a diminuir o impacto do caso Waldomiro Diniz.
O assessor direto do então todo-poderoso ministro José Dirceu
foi flagrado em contatos com, digamos, a Contravenção.
Mesmo assim, as casas de bingo se beneficiaram de liminares
sem conta, espalharam-se por
toda parte, cresceram como palácios, lavaram dinheiro, fizeram
amigos e arruinaram cidadãos.
Com sua Operação Furacão, a
Polícia Federal vem revelando
de que modo, ao longo do tempo,
os bingos estenderam suas ramificações pelo aparelho de Estado.
Tanto quanto pelos efeitos
imediatos de sua ação repressiva,
a operação adquire importância
pelo que tem de simbólico. Representa um alerta -e uma esperança- para uma sociedade que,
em muitos aspectos, se acostumou a conviver com a "contravenção", a aceitar o descrédito da
ordem legal, a tolerar o intolerável. Basta de bingos; e que a lei
seja simplesmente cumprida.
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