São Paulo, segunda-feira, 23 de abril de 2007

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Basta de bingos

A Operação Furacão tem impacto positivo numa sociedade acostumada a conviver com o descrédito das leis

"CONTRAVENÇÃO" é uma daquelas palavras de uso corrente no Brasil cuja dimensão sociológica dificilmente poderia ser explicada a um observador estrangeiro. Corresponde ao que não é lícito, mas funciona mesmo assim; que deveria ser clandestino, mas é visível em toda esquina; que deveria ocultar-se, mas se ostenta orgulhosamente em praça pública.
Seria então, pode perguntar o hipotético observador, algo semelhante a assaltos, arrastões, fuzilamentos? Pois em toda grande cidade brasileira os crimes mais bárbaros e chocantes acontecem à luz do dia.
Tentaríamos explicar que não é bem a mesma coisa. Ou melhor: é e não é. A "contravenção", no sentido que os brasileiros lhe atribuem, é a ilegalidade em traje de gala, em luxo feérico, em desfile de Carnaval. O bicheiro não é o traficante, o rei do camelódromo não é o contrabandista, o dono do bingo não é o mafioso internacional, o delegado não pertence ao esquadrão da morte, o político não é o ladrão.
Não mesmo? A esta altura, o interlocutor estrangeiro provavelmente estaria perplexo. Não menos do que nós, aliás -já impotentes para esclarecer uma distinção que aos poucos se consome num pesadelo bizantino.
O fenomenal crescimento dos bingos e caça-níqueis no Brasil exigiria, para ser entendido em seu pormenor jurídico, a sutileza proverbial das gerações de sábios que se perderam, ao longo de séculos, nas indecidíveis controvérsias teológicas que fizeram a fama e a ruína de Bizâncio.
O jogo foi proibido em todo o território nacional no ano de 1941. O jogo do bicho, entretanto, sobreviveu e prosperou magnificamente desde então. O Estado que proíbe cassinos e tolera o jogo do bicho promove, inventa e propagandeia todo tipo de loterias. Duas leis, em 1993 e 1998, autorizaram o funcionamento de bingos, a pretexto -no Brasil, as coisas são assim- de incentivar o esporte e a atividade física. Para que não restassem dúvidas quanto ao seu propósito, esses diplomas legais ganharam o nome de dois craques do futebol.
No ano de 2000, a Lei Zico e a Lei Pelé tiveram revogadas suas disposições relativas à jogatina; como se não bastasse, o bingo foi proibido novamente em 2004, numa estrepitosa medida provisória destinada a diminuir o impacto do caso Waldomiro Diniz. O assessor direto do então todo-poderoso ministro José Dirceu foi flagrado em contatos com, digamos, a Contravenção.
Mesmo assim, as casas de bingo se beneficiaram de liminares sem conta, espalharam-se por toda parte, cresceram como palácios, lavaram dinheiro, fizeram amigos e arruinaram cidadãos.
Com sua Operação Furacão, a Polícia Federal vem revelando de que modo, ao longo do tempo, os bingos estenderam suas ramificações pelo aparelho de Estado.
Tanto quanto pelos efeitos imediatos de sua ação repressiva, a operação adquire importância pelo que tem de simbólico. Representa um alerta -e uma esperança- para uma sociedade que, em muitos aspectos, se acostumou a conviver com a "contravenção", a aceitar o descrédito da ordem legal, a tolerar o intolerável. Basta de bingos; e que a lei seja simplesmente cumprida.


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