São Paulo, segunda-feira, 23 de abril de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ALBA ZALUAR

Balas, só de doce

VOLTEI RECENTEMENTE de Barcelona, cidade que me impressionou pela beleza da arquitetura e das obras de arte mas principalmente pela identificação que seus moradores têm com ela.
Artistas estão na rua, nos prédios, nas obras de arte em cada canto mais espaçoso. Mas quase não se vêem estátuas de heróis. É uma cidade que preza a criatividade da beleza feita pelos seus artistas. E, na contramão dos fluxos predominantes da globalização, também em cada canto eu ouvia música brasileira. Até mesmo num desfile da festa de um santo ritmistas tocavam no ritmo das escolas de samba e cantavam "meu brasil brasileiro" em catalão, enquanto lançavam balas (de doce, é claro) na platéia! Chama-se a "dolça festa".
Ora vejam só: a nossa música e o nosso espírito brincalhão adocicam a vida de Barcelona, enquanto aqui as balas, nada doces, matam.
Eis um de nossos muitos paradoxos: nas cidades brasileiras onde os índices de criminalidade violenta cresceram tanto, a vida social nas vizinhanças já foi muito rica, tendo criado times de futebol, escolas de samba, grupos de maracatu, folias etc. Hoje, essa sociabilidade da alegria vem sendo ameaçada pelo crime organizado e pelos grupos armados, que, com suas balas letais, mudaram as regras de convivência nas vizinhanças pobres. Os pobres tinham então mais emprego e mais transporte público na rede ferroviária, montada para servi-los, além de policiamento feito pela guarda civil.
Não se pode voltar ao passado, mas pode-se tentar mudar o presente. Um modo de recuperar a imagem das cidades para os próprios moradores e para o mundo pode ser planejado para recuperar a sociabilidade local. Isso exige que o fluxo de armas e balas amargas seja interrompido nas suas principais fontes: as quadrilhas de armeiros, a falta de controle de estoques nas Polícias Militares estaduais e nas Forças Armadas Brasileiras.
Além disso, mudar as regras do policiamento ostensivo e investigativo, não só trocando a prioridade da repressão para a investigação mas transformando os procedimentos usados pelos policiais em suas atividades para assegurar o respeito ao cidadão.
E vamos valorizar nas próprias cidades aquilo que leva a boa imagem do Brasil ao exterior: usar a estética e fazer dos produtos efêmeros dos desfiles algo mais perene para embelezá-las e homenagear seus criadores. Isso daria mais empregos para os jovens desocupados das áreas carentes em projeto de integração, mas um que atinge a raiz dos moradores das cidades onde surgiram vários gêneros musicais.


ALBA ZALUAR passa a escrever às segundas-feiras nesta coluna.


Texto Anterior: Rio de Janeiro - Ruy Castro: Vampiros de almas
Próximo Texto: Frases

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.