São Paulo, quarta-feira, 23 de abril de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ANTONIO DELFIM NETTO

Prestar contas

A CADA DIA fica mais evidente que a "ciência econômica" assumiu, nas mãos de alguns dos nossos "cientistas", um caráter de perversão religiosa.
Kant apontou quatro dessas perversões: 1) a teosofia que se utiliza de conceitos metafísicos para confundir a razão ("produto potencial", "taxa natural de desemprego"); 2) a demonologia, que antropomorfiza o Ser Supremo (o Banco Central); 3) a teurgia, a crença de que o Ser Supremo possa se comunicar conosco (o Comitê de Política Monetária - Copom) e 4) a idolatria, a crença de que não estaremos em comunhão com o Ser Supremo se não tivermos fé nas "leis" que ele nos dita.
O símile é tão completo que chamam de "ortodoxo" o portador da crença verdadeira. "Heterodoxo" é todo o resto...
Para assegurar um bem público essencial à coesão social e à eficiência do sistema produtivo, que é a estabilidade do valor interno da moeda, a sociedade impõe ao poder incumbente (o governo passageiro no comando do Estado permanente) limites para a sua ação no campo monetário, onde o oportunismo eleitoral pode produzir profundos estragos socioeconômicos. Não é possível deixar de reconhecer, entretanto, que a autonomia do Banco Central, a quem é transferida aquela tarefa, implica um evidente déficit democrático.
O poder incumbente transitório, escolhido nas urnas, cede (por decisão "preventiva") a missão de garantir a estabilidade do valor da moeda a um grupo de indivíduos de integridade e conhecimento comprovados, mas não-eleito. Fomos, somos e provavelmente continuaremos a ser a favor de um Banco Central autônomo, mas temos imensa dificuldade de aceitar comportamentos idiossincráticos, supostamente suportados não por evidências empíricas fortes, mas pela perversão religiosa de um suposto conhecimento "científico" inspirado na imoralidade ínsita no DNA do sistema financeiro.
Diante das experiências recentes (2004 e 2008), fica cada vez mais claro que a sociedade (o Congresso Nacional) tem que exigir satisfação do corpo "não-eleito". Ele precisa revelar em tempo hábil as razões que informam suas decisões, porque elas influem no PIB e no emprego. Não de forma genérica, não protegidos cada um pela irresponsabilidade dos outros (como nas atas do Copom), mas por votos individuais explícitos, para que a sociedade possa convencer-se da qualidade das decisões tomadas.
Isso é ainda mais necessário agora que o Copom é dominado por um pensamento único que se pretende "científico".


contatodelfimnetto@uol.com.br

ANTONIO DELFIM NETTO
escreve às quartas-feiras nesta coluna.


Texto Anterior: Rio de Janeiro - Ruy Castro: Notícias do fumacê
Próximo Texto: Frases

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.