São Paulo, sábado, 23 de abril de 2011

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A lei antivéu na França fere o Estado laico?

SIM

O véu da intolerância

ROBERTO LIVIANU

Há duas semanas, os franceses vivem sob a batuta de uma lei que trouxe a toda humanidade mais intolerância, segregação e subcidadania. A lei antivéu, que proíbe muçulmanas de cobrir o rosto nas ruas, nasceu impregnada de xenofobia e caráter discriminatório, em movimento estatal não isolado.
Por isso, a França tem sido palco nos últimos anos de uma série de atos e manifestações intensas de repúdio a posturas estatais antiestrangeiros. E o que causa maior perplexidade é a justificativa que adota o governo francês, no sentido de que a medida vem em defesa do caráter laico do Estado. Cogita-se agora ir além: proibir muçulmanos de orar em espaços públicos.
Durante muito tempo, Estado e Igreja foram quase como gêmeos siameses, quando, no século 16, por ocasião da Reforma protestante, Martinho Lutero apontou corajosamente os malefícios sociais advindos da adoção do Direito canônico como instrumento regulador da sociedade e enfatizou a necessidade de se ter leis laicas, racionais e mutáveis, pregando o não ao dogma -verdade histórica absoluta, imutável e inquestionável.
A reflexão proposta por Lutero foi de extrema importância para a construção do conceito moderno de cidadania. Na França, em especial, há 222 anos foram banidos de prédios públicos os símbolos religiosos e se extinguiu o ensino religioso em escolas.
Abominar o véu que as mulheres islamitas usam para cobrir o rosto é desconsiderar que a indumentária das pessoas se relaciona às suas matrizes culturais e históricas. Será que, se um grupo de francesas protestantes mais fervorosamente puras quisessem cobrir os rostos com véus, apenas por isso seriam abordadas pela polícia?
Viola-se, em nome da laicidade do Estado, da transparência e da segurança dos cidadãos, o direito à soberania cultural dos povos, o direito à personalidade e o próprio direito à liberdade de expressão, já que o trajar é uma verdadeira forma de expressão.
Desrespeitar estrangeiros parece ter virado algo tolerável. É ilustrativa, neste sentido, uma cena do filme "O Plano Perfeito", de Spike Lee, em que um estrangeiro -que, na verdade, era apenas uma das vítimas do assalto ao banco- tem seu turbante arrancado em público, à força, e puxadas com violência as tranças de seu cabelo de forma humilhante, indigna e constrangedora, logo sendo colocado por sua condição de estrangeiro no patamar de suspeito.
No fundo, não há defesa alguma do caráter laico do Estado, que não passa de mero pretexto jurídico-político para agredir e desrespeitar pessoas adeptas de uma determinada religião, ferindo de morte a liberdade de credo.
Ou alguém já ouviu falar de lei proibindo os sacerdotes da igreja católica e de outros credos de usarem suas largas batinas em espaços públicos em prol da segurança pública, em função do risco de ocultarem armamentos?
Não podemos nos esquecer jamais de que as ideias do Iluminismo francês determinaram profunda revisão de conceitos universais, substituindo-se o eixo central de preocupação da civilização, que era Estado/igreja e passou a ser a dignidade humana. E de que, nas democracias modernas, os governantes são escolhidos pela maioria, mas devem governar para todos, inclusive para as minorias.
Em tempos de celebração da Páscoa cristã e do Pessach judeu, espera-se que a forte simbologia humanista dessas festas possa reacender a trilogia libertária francesa de 1789 -liberdade, igualdade e fraternidade-, assim como a relembrança sobre as deliberações da conferência da Unesco (Paris, 1995) que institui o Dia Internacional da Tolerância.

ROBERTO LIVIANU, 42, doutor em direito pela USP, é promotor de Justiça e presidente do Movimento do Ministério Público Democrático.

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