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TENDÊNCIAS/DEBATES
200 anos de Judiciário independente
HENRIQUE NELSON CALANDRA
Embora a autonomia financeira do Judiciário esteja assegurada pela Constituição, isso não vem sendo observado na prática
NO ÚLTIMO dia 10 de maio, comemorou-se o bicentenário
de Poder Judiciário independente. A data remete à elevação, no
longínquo ano de 1808, da Relação do
Rio de Janeiro -antigo órgão judicial
que funcionou entre 1751 e 1808- à
condição de Casa da Suplicação do
Brasil. Com essa medida, executada a
mando de d. João 6º, os processos
passaram a tramitar no país, sem precisar do aval da Suprema Corte em
Portugal.
A Casa da Suplicação pode ser considerada -e merece ser celebrada- a
instalação do Poder Judiciário no
Brasil, mas não do Poder Judiciário
independente. Isso porque as normas
vigentes eram portuguesas, ainda que
os feitos corressem por aqui.
O que se verifica naquele momento
da história é a transposição do modelo judiciário lusitano para o Brasil.
Essa estrutura transplantada de Portugal para nosso país seria ainda mantida durante o império, inclusive com
as denominações utilizadas até hoje,
como "ministro" e "desembargador".
A Constituição de 1824 instituiu os
quatro Poderes -Executivo, Legislativo, Judiciário e Moderador. Apesar
de ser reconhecido por lei, o Judiciário estava condicionado ao império e
reportava-se ao Ministério da Justiça.
O primeiro rascunho de um Judiciário independente começa a ser desenhado quando a magistratura deixa
de ser subordinada aos Poderes Executivo e Moderador, em 1828. Nesse
momento, é criado o Supremo Tribunal de Justiça.
A estrutura primária que edificou,
em linhas gerais, a organização judicial da colônia, tais como os tribunais
do Desembargo do Paço e a Mesa da
Consciência e Ordens, foi extinta. As
Câmaras Municipais também foram
destituídas de funções judicantes.
Com a proclamação da República,
em 1889, e a posterior sanção da
Constituição de 1891, na qual se estabelece a divisão tripartite de Poderes,
o Judiciário ganha uma maior autonomia; todavia, ainda não no mais
pleno valor semântico dessa palavra.
Isso só iria acontecer quase um século depois, com a Constituição de
1988, que confere, pelo artigo 99, autonomia financeira ao Judiciário e inclui matérias relativas à administração judicial.
Os avanços obtidos pela magistratura no decorrer desses 180 anos -intervalo entre a instalação da Casa da
Suplicação e a promulgação da Constituição de 1988- foram essenciais
não apenas para a consolidação do
Poder no Brasil como também para a
evolução da atividade jurisdicional.
É impossível imaginar o que seria
de nossa nação caso não tivesse um
órgão como o Supremo Tribunal Federal para assegurar a harmonia entre os Poderes e o devido cumprimento à Carta Magna, responsável por
resguardar os princípios fundamentais que sedimentam o Estado democrático de Direito.
Motivo de muita comemoração, o
segundo centenário da independência do Poder Judiciário também nos
faz, paralelamente, um convite à reflexão. Embora a autonomia financeira do Poder esteja assegurada pela
Constituição, como já mencionado,
esse direito conferido a nós no papel,
na prática, não vem sendo observado.
Somos, sim, independentes em matéria administrativa e temos liberdade de atuação. No entanto, o tripé que
sustenta a nossa autonomia está incompleto -falta-nos uma das bases
de sustentação, que é a auto-suficiência financeira. Somente de posse dessa garantia conseguiremos imprimir
mais eficiência à máquina judiciária.
Precisamos também rever a nossa
legislação, principalmente a penal, a
fim de arejá-la e torná-la mais atenta
e fiel à realidade de nosso século.
O Código Penal, por exemplo, é da
década de 1940 -uma época em que
crimes como seqüestro relâmpago e
organizações criminosas como o PCC
não existiam.
A burocracia, o formalismo e o ritualismo -heranças portuguesas que
permeiam o nosso Direito- também
não fazem mais sentido num mundo
em que a tendência é uma demanda
processual cada vez mais crescente.
Trabalhar para aperfeiçoar a Justiça, tornando-a ainda mais forte e independente, é a melhor forma de celebrar os 200 anos do Poder Judiciário e garantir que, no próximo centenário, a comunidade jurídica e a sociedade tenham muito mais do que se
orgulhar e festejar.
HENRIQUE NELSON CALANDRA, 62, desembargador do
Tribunal de Justiça de São Paulo, é presidente da Apamagis (Associação Paulista de Magistrados).
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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