São Paulo, segunda-feira, 23 de junho de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Miopia diplomática

OSCAR VILHENA VIEIRA, LUCIA NADER e JUANA KWEITEL


O silêncio diante das barbáries praticadas pelo ditador Mugabe é um sinal da miopia de alguns setores de nossa diplomacia


NO PRÓXIMO dia 27 de junho, sexta-feira, os cidadãos do Zimbábue iriam novamente às urnas para o segundo turno das eleições presidenciais. No entanto, Morgan Tsvangirai, candidato de oposição, anunciou ontem sua retirada "de um processo eleitoral violento, vergonhoso e ilegítimo". Robert Mugabe, ditador que comanda o país desde 1980, já havia declarado que não abriria mão do poder "por um mero "x" numa cédula eleitoral" e que, se preciso, pegaria em armas.
Desde o primeiro turno das eleições, em março deste ano, gravíssimas violações aos direitos humanos vêm ocorrendo no país. Estima-se que ao menos 100 pessoas foram mortas, 10 mil feridas e 200 mil deslocadas internamente. Dadirai, esposa de um dos líderes do partido de oposição, MDC (Movimento por Mudanças Democráticas), foi queimada viva depois de ter uma das mãos e os pés cortados.
O Brasil foi observador eleitoral no Zimbábue no primeiro turno e o Ministério das Relações Exteriores (MRE) anunciou informalmente que enviaria uma missão para acompanhar o segundo turno das eleições.
Entre os dois pleitos, o MRE limitou-se a "seguir com interesse os desdobramentos das eleições" e a saudar as iniciativas tomadas pela Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral. Iniciativas, aliás, que fracassaram. Em nenhum momento manifestou objeção às práticas de tortura, às execuções e à repressão sistemática à oposição. Disse não ter fatos concretos para tanto.
A omissão brasileira não suscita apenas um problema de natureza moral ou política, mas também uma questão de natureza jurídico-constitucional. Entre os princípios estabelecidos na Constituição de 1988, encontra-se a "prevalência dos direitos humanos" nas relações internacionais do Brasil (artigo 4º, II).
A esfera de discricionariedade conferida ao Poder Executivo para determinar os rumos da política externa brasileira não pode se converter num instrumento de afronta à Constituição. Por mais flexível que seja a linguagem diplomática e os argumentos sobre quais são as melhores estratégias para a promoção dos direitos humanos, o silêncio obsequioso ao ato de um tirano não parece atender ao imperativo constitucional de prevalência dos direitos humanos.
Invocar o princípio da "não-intervenção", dando-lhe um caráter absoluto, seria retroceder 60 anos, ao tempo em que não havia a Declaração Universal dos Direitos Humanos como parâmetro moral que cria obrigações a todos os Estados. Seria esquecer que o princípio de não-intervenção não se sobrepõe à "responsabilidade de proteger", hoje aceita pela comunidade internacional. Não intervir não é o mesmo que "fechar os olhos" a violações de direitos humanos.
No mesmo sentido, a busca por soluções regionais e a importância de o Brasil manter um bom diálogo com os países da África e da Ásia não o desobrigam de manifestar repúdio no caso de sistemáticos abusos aos direitos humanos e de agir, dentro das regras do direito internacional, para fazer cessar essas violações.
Ao se abster de condenar tais práticas nos organismos multilaterais, o Brasil contribui para acobertar e deixar impunes graves violações à dignidade humana -como fez na Comissão de Direitos Humanos da ONU em 2002, 2003 e 2004 no caso do próprio Zimbábue.
Seria ingênuo acreditar que os diversos interesses geopolíticos e econômicos do Brasil não devam ser levados em consideração na definição da política externa. No entanto, sobrepor tais interesses à vida de seres humanos, além de imoral e inconstitucional, é contraproducente.
Faltam evidências de que as estratégias utilizadas pelo Ministério das Relações Exteriores privilegiem os direitos humanos e contribuam concretamente para salvar vidas nas ditaduras mais sangrentas do planeta. O silêncio do governo brasileiro diante das barbáries praticadas pelo ditador Mugabe é um sinal da miopia de alguns setores de nossa diplomacia, que parecem enxergar apenas interesses imediatos.


OSCAR VILHENA VIEIRA , 42, advogado, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA), doutor em ciências políticas pela USP, é diretor Jurídico da Conectas Direitos Humanos e professor da Escola de Direito da FGV-SP.
LUCIA NADER , 30, cientista política, pós-graduada pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris (França), é coordenadora de Relações Internacionais da Conectas Direitos Humanos.
JUANA KWEITEL , 35, advogada com especialização em proteção internacional dos direitos humanos pela Universidade de Essex (Reino Unido), é coordenadora do Programa Sul Global da Conectas Direitos Humanos.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br


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