São Paulo, domingo, 23 de julho de 2006

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Liberdades e regulamentação do jornalismo

CELSO LAFER


Não cabem, em matéria de exercício do jornalismo, a filiação obrigatória à ordem profissional e a exigência de diploma


TEM SIDO muito criticado o projeto de lei aprovado pelo Congresso e encaminhado à sanção presidencial, que dispõe sobre o exercício da profissão de jornalista. O projeto almeja regulamentar quem pode, privativamente, atuar nos meios de comunicação social e, na sua abrangente rigidez, vai muito além do disposto na legislação anterior, que data do regime autoritário.
Na discussão da questão, uma vertente da maior importância diz respeito à liberdade de pensamento e de expressão, consagrada na Constituição e objeto também de obrigações internacionais. Entre essas obrigações, avultam as provenientes da Convenção Americana de Direitos Humanos -o Pacto de São José, de 1969-, ao qual o Brasil aderiu e recepcionou no plano interno em 1992, reconhecendo, subseqüentemente, a competência obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
A corte, além de sua competência jurisdicional, exerce uma competência consultiva. Pode emitir pareceres não só em relação à interpretação da convenção como também sobre a compatibilidade de leis internas com os dispositivos da convenção, efetuando, assim, um controle das leis nacionais em relação à convenção. No exercício de sua competência consultiva, a corte examinou matéria relacionada ao projeto de lei acima mencionado, pois, em 13 de novembro de 1985, deu parecer sobre legislação interna da Costa Rica relativa ao exercício do jornalismo. Essa legislação exigia filiação ao Conselho Profissional dos Jornalistas ao qual, por sua vez, só teriam acesso os detentores de diploma universitário de jornalismo.
A corte, por unanimidade, entendeu que a filiação obrigatória, ao impedir o acesso de qualquer pessoa ao uso pleno dos meios de comunicação social como veículo para expressar ou transmitir informações, era incompatível com o art. 13 do Pacto de São José, que trata da liberdade de pensamento e de expressão. A corte, também por unanimidade, entendeu que a legislação da Costa Rica, ao impedir que pessoas sem diploma universitário de jornalismo pertencessem ao Conselho Profissional de Jornalistas -e, conseqüentemente, pudessem valer-se plenamente dos meios de comunicação social como veículo para expressar e transmitir informações- era incompatível com o art. 13 do Pacto de São José.
Os argumentos da corte merecem ser lembrados na discussão ora em andamento sobre veto do presidente ao projeto de lei encaminhado à sua sanção.
O art. 13, item 1 da convenção, afirma: "Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e expressão. Esse direito inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua escolha".
Na sua análise, a Corte Interamericana de Direitos Humanos realçou as duas dimensões da liberdade de expressão: o direito individual de manifestação do pensamento e o direito coletivo, de todos, de receber informação e conhecer a expressão do pensamento alheio. Por isso, os meios de comunicação social devem estar virtualmente abertos para todos, sem discriminação -o que significa que não cabem exclusões a priori do acesso à mídia.
A corte levou em conta o item 3 do art. 19. Este afirma que não se pode restringir o direito de expressão por meios indiretos, tanto os de natureza governamental quanto os provenientes da ação dos particulares. Concluiu que a legislação da Costa Rica implicava numa restrição à liberdade de expressão que ia além do legitimamente permitido pela convenção.
A corte reconheceu a validade e a utilidade da organização profissional de jornalistas, que é uma expressão do direito de associação. Aduziu, no entanto, que essa utilidade, sobretudo em matéria de auto-regulação da fé pública e da ética, está subordinada ao bem comum. Registrou, nesse sentido, que a liberdade de expressão se insere na alta hierarquia da ordem pública de uma democracia.
Por isso, não cabem, em matéria de exercício do jornalismo, a filiação obrigatória à ordem profissional e a exigência de diploma, como ocorre no caso da medicina ou do direito. Médicos e advogados prestam serviços ao público de outra natureza. No caso do jornalismo, não cabe limitar o direito ao uso pleno das faculdades reconhecidas a todo ser humano pelo art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos que, ademais, restringe indevidamente o direito da coletividade em geral de receber, sem travas, informações de qualquer fonte.

CELSO LAFER , 64, doutor em ciência política pela Universidade Cornell (EUA), é professor titular da Faculdade de Direito da USP e membro da Academia Brasileira de Letras. Foi ministro das Relações Exteriores (governos Collor e FHC) e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (governo FHC). É autor, entre outras obras, de "A Internacionalização dos Direitos Humanos".


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