São Paulo, terça-feira, 23 de agosto de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A longa marcha para a China

EMERSON KAPAZ

De qualquer ângulo que se avalie, o Brasil nunca esteve tão próximo e tão distante da China como nos dias atuais. A proximidade se explica pelo esforço oficial para lançar pontes na direção daquele que é hoje, com seu 1,3 bilhão de consumidores, o maior mercado e também a economia que mais cresce no mundo. A distância é igualmente fácil de explicar. Entre nós, a China, onde há menos de uma década a propriedade privada era proibida pelo regime, mais do que um país desconhecido, é um vasto enigma a ser desvendado -em especial, naquilo que se relaciona com a ética na concorrência.
O objetivo dominante da chamada economia socialista de mercado chinesa é criar empregos para centenas de milhões de trabalhadores que vêm deixando o campo e inundando as cidades. Toda estratégia de crescimento gira em torno desse desafio. Por essa razão, a China, ao mesmo tempo em que busca se integrar à OMC (Organização Mundial de Comércio) como uma liderança emergente na expectativa de assumir cada vez mais seu lugar como potência na economia global, não sabe como lidar com impasses como a pirataria das marcas e, sempre que pode, vira as costas para temas como o direito de propriedade intelectual.
Não é um fenômeno dessa China moderna que ocupa vastos espaços na mídia, em que prevalece a teoria da "economia da gaiola", isto é, a "gaiola" significa o planejamento estatal a controlar o pássaro das forças livres do mercado, que sempre ameaça "voar para longe". Ainda no século 19, nos idos da Guerra do Ópio, os chineses copiavam canhões ingleses com extraordinária perfeição. Hoje, copiam, por exemplo, sofisticados tacos de golfe americanos com apenas 12% a menos da precisão do original.
A pirataria -leia-se: adulteração de marcas- foi uma prática intensificada nas décadas da revolução maoísta. Naqueles tempos, marcados por incruenta guerra ideológica e também violento combate contra a pobreza endêmica, copiar as marcas do Ocidente fazia parte da política de Estado. Agora, atitudes dessa natureza, presentes nos mais diversos campos da atividade industrial, muitas vezes praticadas em fábricas subterrâneas e alimentadas pela mão-de-obra treinada e empregada por fábricas ocidentais instaladas, são consideradas, claro que informalmente, como um caminho seguro para acelerar o ingresso dos chineses na era do consumo. Tanto que, em todas as pesquisas internacionais, a China lidera o ranking dos países nos quais grassa a pirataria.


Entre nós, a China, mais do que um país desconhecido, é um vasto enigma a ser desvendado

Nesse contexto, recomenda a cautela que o primeiro cuidado do governo e do empresariado brasileiro deva ser o de se mover cuidadosamente na aproximação com a China, delimitando com precisão direitos e salvaguardas que assegurem o indispensável respeito aos ritos legais preconizados pela comunidade econômica, particularmente a OMC.
Evidentemente, será um processo árduo, lento e muitas vezes tenso, mas o país não pode deixar se levar pela utopia que, cerca de dois séculos atrás, guiou os fabricantes de tecidos europeus que sonhavam em fazer fortunas com encomendas ilimitadas se conseguissem encompridar em uma polegada os casacos dos chineses. Esse tempo de pura ilusão passou. A China, no passado como agora, se distingue pela racionalidade substantiva das suas metas.
O segundo aspecto a considerar é a frágil competitividade brasileira. A lista de gargalos a eliminar nunca foi tão vasta e envolve as reformas do Estado, a tributária, a trabalhista e a do Judiciário, além de maciços investimentos em infra-estrutura. Essas são as faces visíveis de mudanças que não mais podem ser adiadas. Em paralelo, é imperativo levar em conta as necessidades de abolir a burocracia excessiva e, como desdobramento, combater o mal uso do dinheiro público e elevar a eficiência gerencial do Estado. Aliás, um campo em que a história de mais de 4.000 anos dos chineses, conhecidos pela eficiência da burocracia, tem muito a ensinar.
É esse o panorama que dificulta e torna longa e difícil a marcha brasileira no rumo do sempre magnético mercado chinês. A favor do Brasil existe o fato de que a China, a despeito dos seus paradoxos, se caracteriza pela determinação de evitar conflitos. Diferentemente dos tempos da revolução maoísta, cooperação e integração preponderam sobre os antagonismos. São nuances que não podem ser esquecidas, mas que não se cultive o otimismo fácil. Os chineses são como "gansos voando em formação" -sabem de onde partiram, onde estão e aonde querem chegar.
O Brasil, pela primeira vez na história, se encontra particularmente ansioso para se aproximar da China. Mas não pode incorrer no mesmo erro de Marco Polo, o viajante veneziano que, no século 13, descreveu aquele país como o "mais rico do mundo", impressionado que ficou pela invenção da pólvora, da bússola marinha e da imprensa, mas se esqueceu de que a China pensa muito mais no seu próprio futuro do que na fortuna dos seus parceiros. Por isso, fica a lição da história: é preciso conhecer a personalidade profunda da China para ali conquistar espaços verdadeiros. Sempre foi assim e não será diferente agora, por mais atraente que as oportunidades possam parecer.

Emerson Kapaz, 50, é presidente do ETCO -Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial. Foi secretário da Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico do Estado de São Paulo (governo Covas).
www.etco.org.br


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