|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TENDÊNCIAS/DEBATES
Newton dorme
ALOIZIO MERCADANTE
Jornalistas e políticos não têm o rigor científico de Newton. Mas todos têm de ter um compromisso mínimo com os fatos
"Hypothesis non fingo" (Isaac Newton)
ISAAC NEWTON era um cientista
tão genial quanto rigoroso. Formulou as teorias que, pela primeira vez, explicaram o mundo do ponto
de vista lógico-matemático. Contudo,
não conseguiu explicar como a gravidade funciona, como um corpo atua
sobre outro à distância.
Indagado exaustivamente sobre o
assunto, escreveu, no "Scholium Generale", que não conseguia deduzir a
natureza da gravidade a partir dos fenômenos que observava e que não teceria hipóteses. Na sua privacidade,
Newton especulou muito sobre o tema e chegou até a criar o conceito do
éter espacial para tentar explicar a
ação à distância. Porém, fiel ao seu rigor científico, nunca publicou uma
página sobre suas especulações.
Jornalistas e políticos não têm, entretanto, o rigor científico newtoniano. É natural, são ofícios diferentes,
que não requerem o uso de métodos
científicos. Mas, independentemente
do ofício, todos têm de ter um compromisso mínimo com os fatos.
Em primeiro lugar, é questão de
bom senso: o desapego aos fatos conduz necessariamente ao erro. Em segundo, é uma questão de espírito público: falta de objetividade e de imparcialidade nos ofícios que formam a
opinião pública faz mal à democracia.
Apesar disso, parte da mídia e classe política oposicionistas vem sendo
assolada por um febril "modus speculandi" que faria corar a pitonisa de
Delfos e o barão de Munchausen.
Tornou-se moda testar hipóteses.
Ante qualquer acontecimento, tece-se, de imediato, uma hipótese para
explicá-lo. Tudo bem, é normal que se
tente explicar os acontecimentos,
mesmo quando não se sabe nada sobre eles. Mas não é normal nem desejável que se tente explicar algo sem
sequer fazer uma investigação minimamente rigorosa sobre o assunto.
Também não é normal nem desejável que, ante as múltiplas hipóteses
que podem explicar um fenômeno, se
escolha só a que serve ao interesse
próprio. E absolutamente não é normal nem salutar para a democracia
que a hipótese arbitrariamente escolhida seja apresentada como fato. Por
último, é no mínimo curioso que as
hipóteses escolhidas sejam todas
contrárias ao governo federal.
Há fatos inquietantes. O incêndio
ainda consumia o avião da TAM
quando os jornais televisivos afirmaram, em uníssono, que a aeronave havia "derrapado" na pista escorregadia. Assim, foi testada a hipótese de
que o acidente fora provocado pela
falta de ranhuras em Congonhas.
Os mais exaltados chegaram a testar a hipótese de que o governo Lula
tinha assassinado 199 pessoas. Uma
conhecida agência entrevistou um
"consultor de aviação" que acusou peremptoriamente a Infraero de "assassinato coletivo". Perdeu-se toda a
cautela e a compostura, e surgiram as
manchetes falando da "tragédia
anunciada". Na onda de histeria especulativa, até mesmo psicoanalistas,
aparentemente com grandes conhecimentos técnicos sobre aeronáutica,
se permitiram aderir à hipótese do assassinato coletivo.
Porém, com a revelação de que o
avião operava sem um dos reversos e
que os manetes não estavam na posição correta no momento do pouso, tal
como acontecera em dois outros bem
conhecidos acidentes com o mesmo
tipo de aeronave, subitamente minguaram as especulações e se passou a
exigir, tardiamente e com o grande
estrago já feito, o aguardo dos resultados do inquérito e a proibição dos julgamentos precipitados.
Talvez frustrado pelo malogro, esse
jornalismo isento voltou à ira imparcial para o teste de outras hipóteses.
Quando dois pugilistas cubanos
que haviam fugido de sua delegação
procuraram a polícia e pediram para
voltar ao seu país, testou-se, de imediato, a hipótese de que o governo Lula, "amigo do governo Fidel Castro",
negou-lhes insensivelmente o refúgio
de que precisavam. No Senado, chegou-se mesmo a testar a hipótese de
que o episódio dos pugilistas era igual
ao de Olga Benário, entregue por Getúlio aos seus carrascos nazistas.
Ante a revelação de que eles recusaram as reiteradas ofertas de asilo, fato
testemunhado pela OAB-RJ, e que
outros dois atletas cubanos que pediram refúgio foram acolhidos pelas autoridades brasileiras, testa-se, agora,
a hipótese de que os pugilistas foram
"ameaçados por Havana" e que o governo brasileiro deveria ter feito alguma coisa. Sabe-se lá o quê.
Exemplos como esses se avolumam
na história recente do Brasil. São tantos que já dá até para aventar uma hipótese: parte da mídia oposicionista
não se preocupa muito com a investigação isenta dos fatos e atua de forma
parcial e tendenciosa, maculando a
enorme contribuição que a imprensa
livre deu à consolidação da nossa
democracia.
Tudo bem, não se exaltem, estamos
apenas exercendo o péssimo costume
de testar hipóteses no campo da política e do jornalismo. Newton dorme.
ALOIZIO MERCADANTE, 53, economista e professor licenciado da PUC-SP e da Unicamp, é senador da República
pelo PT-SP.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
Texto Anterior: Frases
Próximo Texto: Ricardo Izar: Terrorismo sindical
Índice
|