São Paulo, domingo, 23 de setembro de 2007

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Pesquisas com células-tronco embrionárias

HUGH LACEY


A discussão ética necessária não deve ser evitada sob a alegação de que apenas sentimentos religiosos se interpõem a tais pesquisas


A CONTROVÉRSIA em torno das pesquisas com células-tronco embrionárias é freqüentemente retratada como conflito entre o progresso tecnocientífico e sentimentos religiosos reacionários.
Em seu cerne estão divergências em relação ao que constitui um ser humano vivo; em especial, se embriões humanos recém-formados, dotados de algumas poucas células, são seres humanos vivos em si ou se são apenas aqueles cujo desenvolvimento continua que se tornam seres humanos em etapa posterior.
Essas divergências têm importância ética. Geralmente se reconhece -em palavras, mesmo que nem sempre na prática- que os seres humanos vivos têm direitos, e o primeiro e mais importante deles é o direito à vida, que não pode ser desprezado exceto por razões de ordem superior.
Poucos negariam que o progresso tecnocientífico legítimo não deveria ameaçar os direitos humanos fundamentais. Os defensores do direito ao aborto e das pesquisas com células-tronco embrionárias insistem que tais práticas não ameaçam os direitos fundamentais. Para eles, a menos que e até que um embrião alcance uma etapa determinada, ele não é um ser humano vivo; dependendo de seu meio ambiente, é apenas parte dos tecidos de sua mãe ou ("in vitro") um conjunto complexo de células e moléculas. Seu ponto de vista, porém, não é um resultado comprovado por pesquisas científicas.
Os critérios dos testes científicos são empíricos. A pesquisa empírica pode nos dizer muito sobre um embrião nas diversas etapas de seu desenvolvimento, mas não pode nos dizer que alcançar uma etapa específica marca o início da vida humana, e não um novo momento da trajetória de um ser humano vivo rumo à maturação. A ciência nos revela que o genoma distinto de um ser humano maduro está presente assim que foi formado o embrião, mas não que o genoma é o suficiente para que esse ser se constitua em ser humano vivo. Um ser humano vivo tem direitos, e "direitos" não fazem parte da linguagem da teoria científica. A ciência não pode decidir sobre questões-chave de importância ética; por exemplo, se os embriões recém-formados devem ou não ser considerados portadores plenos de direitos humanos.
Embora a afirmação "um embrião recém-formado é um ser humano vivo" não contradiga os resultados científicos aceitos, ela pode entrar em conflito com pontos de vista metafísicos, como o reducionismo materialista, que muitas vezes se pressupõe que sejam partes integrantes da perspectiva científica. Um ponto de vista metafísico, porém, não deve pesar mais sobre a política científica do que as crenças religiosas.
Os que propõem restrições éticas às pesquisas com células-tronco embrionárias não precisam estar em oposição ao progresso tecnocientífico legítimo. Porém, eles contestam a extensão em que problemas urgentes, ligados ao bem-estar humano, estão abertos a soluções tecnocientíficas e só a elas e, assim, contestam a legitimidade imediata normalmente concedida à implementação de inovações tecnocientíficas. Eles também contestam o imperativo ético presumido de priorizar soluções tecnocientíficas, além da insinuação de que seria deficiência ética lançar dúvidas sobre a legitimidade de pesquisas que possam conduzir a tais soluções.
Essa contestação não está em oposição à ciência e pode nem sequer fundamentar-se imediatamente em preocupações com os direitos dos embriões. As pesquisas tecnocientíficas podem ser realizadas sob a égide do "princípio da precaução". Este recomenda adiamentos na implementação de inovações tecnocientíficas -e possivelmente das pesquisas que as produzem- enquanto se conduzem pesquisas empíricas adicionais sobre seus riscos potenciais e sobre alternativas que não envolvam o mesmo tipo de risco.
As pesquisas com células-tronco se situam entre as tecnologias genéticas inovadoras que estão sendo introduzidas nas práticas reprodutivas, a respeito das quais foram levantadas preocupações graves em razão de seu potencial impacto negativo sobre a manutenção do respeito resoluto pelos direitos humanos e o senso do caráter sagrado da vida humana. Tais riscos potenciais poderiam nos levar a fazer uma pausa, na qual suas implicações seriam submetidas a exame cuidadoso e a questão de o que constitui um ser humano vivo poderia ser tratada de forma apropriada.
A discussão ética necessária não deve ser evitada sob a alegação de que é "anticientífico" questionar a urgência das pesquisas com células-tronco embrionárias e de que apenas sentimentos religiosos reacionários se interpõem aos avanços prometidos por essas pesquisas.


HUGH LACEY, 68, filósofo da ciência, é professor emérito do Swarthmore College (Pensilvânia, EUA) e pesquisador visitante freqüente no Departamento de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. É autor de "A Controvérsia sobre os Transgênicos: Questões Científicas e Éticas".

Tradução de Clara Allain.

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