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VLADIMIR SAFATLE
Um mundo invertido
Há certas épocas e situações em que podemos observar o esgotamento de processos históricos que até então
pareciam guiar nossa maneira
de nos orientarmos na política. Quando isso ocorre, nos
vemos diante da dança vertiginosa das inversões. Valores e
normas que antes pareciam
ter a força de garantir a efetivação de expectativas de liberdade, autorrealização e justiça
passam simplesmente a funcionar de maneira contrária.
Nessas horas, vemos um cenário político macabro, composto de tolerantes que usam
o discurso da tolerância para
justificar a intolerância mais
crassa contra estrangeiros, democratas que defendem práticas autoritárias, pacifistas que
gostariam de tratar com bombas tudo o que está abaixo da
Turquia e cosmopolitas comunitaristas. Isso quando não somos assombrados pelo retorno de pensamentos edulcorados de crítica da modernidade
pregando a necessidade de
uma refundação conservadora de nossos vínculos sociais.
No fundo, todas estas figuras
indicam como a substância
normativa das nossas sociedades ocidentais não tem mais
força nenhuma para orientar a
crítica social.
Por isso, não é difícil entender por que intelectuais atentos como Antonio Cícero estranhem o fato de que insisti nesta coluna na existência de
uma dinâmica bipolar e complementar entre liberais e conservadores. Se voltarmos os
olhos para o mundo anglo-saxão, os liberais não são definidos exatamente por contraposição ao pensamento conservador fortemente tingido de
matizes religiosas?
Scott Fitzgerald disse que a
prova de uma inteligência superior consistia em ter duas
ideias contrárias na cabeça e
continuar a funcionar. Talvez
isso não seja mais privilégio
de inteligências superiores.
Um país como o Brasil, que,
já no século 19, mostrou como
era possível ser, ao mesmo
tempo, liberal e escravagista,
não deveria estranhar o fato
de que, em certas situações, as
ideias saem do lugar.
Já não é de hoje que o pensamento liberal demonstrou
ter a flexibilidade necessária
para ora se adequar aos laivos
esquerdistas de um liberal nova-iorquino ora se adequar
àqueles que elevam a "luta
contra os tentáculos do Estado" e o direito de propriedade
à medida de todas as coisas.
Hoje, ele alimenta, de maneira hegemônica, uma visão
de mundo profundamente
atomizada, que consiste em
ver a sociedade como uma mera associação de indivíduos.
Vale a pena ficar atento a
essas inversões, porque,
atualmente, é difícil encontrar
algo como um "tipo ideal"
conservador. Ao contrário,
eles sempre vêm com alguns
traços atenuantes, com alguns
discursos híbridos. Maneira
de conjugar certas exigências
contraditórias que habitam
nossa sociedade, maneira de
tirar certas ideias do lugar.
VLADIMIR SAFATLE escreve às terças-feiras
nesta coluna.
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